1 – Primeiro andamento.
Na penumbra do imenso palco, um está sentado ao piano, o outro, pullover azul e microfone na mão, deambula, senta-se, volta a levantar-se. Às vezes sussurram os dois, às vezes Camané interpela os técnicos sobre o modo como nesse momento a luz incide sobre ele, às vezes há uma breve pausa, olham ambos para o papel com o alinhamento, monologam baixinho. E depois Mário Laginha volta a tocar e Camané volta a cantar. É o último ensaio, são os últimos retoques, a derradeira “volta” de aperfeiçoamento e detalhe antes da prova de fogo dessa noite na Casa da Música onde Camané se fará ouvir apenas acompanhado pelo piano de Laginha. Que o mesmo é dizer, com aquela convicção de aço que ponho quando a pele e o coração me dizem que estou absolutamente certa, que estou a falar de dois sobredotados. E da incrível, indefinível, jubilosa, sorte que temos em eles terem ambos nascido em Portugal. De os poder ter aqui mais à nossa mão.
Segundo Andamento.
Uma vez, há muitos anos, fui sozinha à Aula Magna ouvir Camané. E naquela brevíssima pausa que por vezes acontecem aos fadistas no “swing” de uma frase, ouviu-se uma voz feminina soltar-se da plateia para o palco “Ai… Camané”. Era aquilo mesmo, que outra coisa dizer, nunca mais me esqueci. E hoje, na tarde ensolarada do Porto onde vim para este espectáculo, assistindo ao ensaio na deserta plateia prateada da Casa da Música, mais uma vez percebo que mais nada senão aquele “ai Camané” pode rematar o fulgor do “Com que voz”. E pode – se é que pode – oferecer-nos, em estado quimicamente puro, o desamparo de “Abandono”, que ouço agora. Momentos de graça, também percebo.
Terceiro Andamento.
“Os dois, só os dois?”, espantei-me eu quando Camané me contou há dias que “iria ao Porto só com o Mário”. Fiquei incrédula, estou sempre com o ouvido estacionado no José Manuel Neto – outro génio e também nosso: “Isso é porque você nunca viu nem ouviu a mão do Mário a fazer nas teclas o mesmo que a mão do Zé Manel faz nas cordas da guitarra e a ir por ali fora no piano…”
Sorte minha, prestei muita atenção a isto. O fado leva-me sempre, Camané leva-me até ao fim do mundo. Meti-me num comboio e fui.
Quarto Andamento.
Nada em princípio dirigiria a mão de Laginha para esta aventura, nem ele era sequer um ouvidor de fado. Não estava “aí”, estava na sua, que não era esta. E depois, de início talvez sem explicação racional ou justificação aparente, as coisas desenrolaram-se, o dom de um e o génio do outro também, e o que era uma temeridade ou poderia vir a ser uma intenção falhada, deixou de ser. E transfigurou-se numa experiência artística seriíssima, conversada, estudada, experimentada, amadurecida. Não foi um “entretém”, nem ainda menos “um vamos os dois brincar aqui um bocadinho”, mas um muito inspirado exercício que um dia destes -quando eles o tiverem aprimorado até ao limite da perfeição — pode desaguar numa uma obra-prima da música. Como um ex-libris. Nosso. (Tenho sempre que insistir nisto do “nosso e nossa”, santos de casa nunca fizeram milagres e mesmo que neste caso, ambos, Camané e Laginha, sejam muito reconhecidos, aplaudidos e distinguidos, parece-me sempre que deveriam ser ainda mais.)
Ultimo andamento.
“Ah eu estava muito nervoso…” No bruáá dos bastidores, não tinha razão o fadista, no final de uma actuação memorável, casa cheia e plateia de pé. O que passara do palco para a sala não fora a tensão ou a sombra de uma súbita insegurança mas a voz portentosa de Camané e o torrencial talento de Laginha nessa sintonia que milagrosamente pode por vezes ocorrer entre dois criadores. Mas passara também uma outra coisa que durante todo o espectáculo flutuou silenciosamente sobre a plateia e depois ficou para todo o sempre inscrita nas paredes daquela Casa e na memória da noite: passou a humildade, o imenso respeito de ambos para ambos, a “rendição” recíproca que podíamos testemunhar em cima do palco quando um falava do outro: “ninguém canta como ele”, dizia o pianista sem parar de tocar, apenas levantando ligeiramente a cabeça e interrompendo por uma fracção de segundo a oração que em conjunto rezava com o piano. “E agora ouçam só este fado que o Mário compôs…” e Camané sai de cena e deixa o palco entregue a Laginha e nascia o Fado Barroco… e por favor não esqueçam este título, “Fado Barroco” quando alguém se lembrar de o gravar, obrigação imperiosa. Ao princípio parece-nos Bach, ah, ele foi ao Bach, afinal é um dos seus eleitos, pensei eu, mas logo a seguir já estávamos capturados pelo fado: em vários tons, em vários sons, e eis um quase divino esplendor barroco cruzado de fado e neles se encaixando um bom bocado de nós, do que somos e fomos. Eu sei, um risco isto tudo, conheço um mar – um oceano – de gente que boceja com a palavra fado e desdenha o conceito. Falta-lhes qualquer coisa, uma pena. Ou então, sim talvez eu exagere um pouco, há tempos alguém me mandou um sms que dizia apenas “se eu pudesse dava-lhe o Nobel do Entusiasmo”.
Deve ser isso, penso eu enquanto desço a vertigem de prata das escadas da Casa da Música. Mas que seria de mim sem “isso”?
2 — É muito divertido estar vivo na Rua de Santa Catarina, no Porto. Animada e popularíssima, tudo lá se passa, gente em trânsito ininterrupto, aos pares ou aos cachos, num vai e vem de onde se solta, imparável, o inconfundível sotaque nortenho. E lojas a perder de vista, um imenso centro comercial a céu aberto, onde as marcas vizinham com retrosarias, tabacarias, papelarias, mercearias e confeitarias e haverá mais simpático do que apelidar de confeitaria aquilo que a sul, costumamos chamar sem graça nenhuma, de pastelaria?
À beira dos passeios, por entre passos apressados e esplanadas repletas, há uma banca que só vende bonés, exclusivamente bonés, outra uns arremedos de bijuterias, mais adiante outras exibindo quinquilharia, malas, adereços avulso, numa ousada concorrência ao comércio com mais nome e outra idade. E há “artistas-mimos” que mais do que dar um ar da sua graça mímica, dão um ar da sua extrema necessidade e por isso são tão enternecedores; e músicos que ao entardecer enchem a rua de sons melancólicos ou ruído metalizado e há comensais fora ou dentro das confeitarias que apenas parecem ouvi-los com uma orelha distraída. É no meio desta algazarra que mora uma jóia de renome e prestígio que descubro maravilhada: o Grande Hotel do Porto (guardei a factura para os maledicentes do costume). Passa-se a porta e eis-nos noutra época, entre seda drapreada, veludos carmesins e móveis românticos. Uma cenografia. À entrada consta bronze comemorativo de uma imperial estadia no Grande Hotel de D. Pedro II, último Imperador do Brasil e de sua mulher, Thereza Cristina de Bourbon, Princesa das Duas Sicílias, mas dentro a surpresa continua quando passo um corredor: de um e de outro lado das paredes, impressivos elogios encaixilhados e devidamente autografados de quem escolheu aquela morada ao longo de mais de um século. A escolha é democrática, mas a redacção, ora vagarosa, ora veloz, da realeza, da alta aristocracia europeia, de escritores, músicos, actores, literatos, coincide no encanto e no elogio. Foi o artista plástico Fernando Marques de Oliveira — que recentemente lá redesenhou e redecorou quartos e outros espaços — quem me alertara que “não deixasse de ver toda aquela gente nas paredes”.
Lá estavam: Bourbon Parma, Orléans e Bragança, Baviera, Bragança, Rothschild. Mas também o Dalai Lama ou D. Ximenes Bello, e também Svatioslav Richter ou Maria João Pires. E António Ferro, Manuel de Oliveira, Sttau Monteiro (que saudade Luís, que saudade), Mário Claudio e Lobo Antunes. E Popov, La Féria, Diogo Infante.
E Camané, claro, e como não?
3 – O Porto é também Rui Moreira que há muito não via. Conversamos ao almoço, ele com um prego no prato, eu com um bife de mostarda, ele recusando as batatas fritas, eu devorando-as. Evoco as próximas eleições, as possíveis alianças, a geringonça. Falo enfim dessa da política que lhe corre no sangue perguntando-lhe se um dia quererá voar mais alto mas chega a surpreender-me de tão taxativo: “não estou interessado em nada politicamente, nem a nível partidário, nem nacional, tenho a certeza absoluta disso!”
Nem em recandidatar-se? Ui, falta “uma eternidade”, é cedo (“daqui a dois anos e três meses, direi”), dois mandatos parece-lhe um “ciclo suficiente”. Em condições “normais” (“ter concluído ou deixar irrevogavelmente encaminhado o que entendeu como fundamental fazer”) voltará ao que gosta: quer escrever, ler (“tenho lido pouco”), ver os amigos, fotografar, viajar e. bem entendido, estar com os filhos, os netos, a mãe, os irmãos. Um vasto programa.
Há porém algo onde é ainda mais taxativo: “desejo absolutamente que a mesma sociedade civil que se juntou e organizou há seis anos para encontrar uma candidatura independente — a minha — seja de novo capaz de se preparar para encontrar uma nova solução, na qual porém entendo não ter qualquer espécie de posição tutelar”.
Para estar totalmente livre e poder vir a liderar o Futebol Clube do Porto?
“Ah… o Presidente do Futebol Clube é eterno, vai lá ficar sempre…”
Uma não-resposta que não ilude o rumor que circula. E com razão, como me explicam: seria uma alternativa pacífica e uma candidatura bem vista. O presidente da Câmara tem a paixão da sua cidade, é intrinsecamente “dali”, conhecem-no, o povo estima-o sem precisar de recorrer a selfies. E last but not least, é um “portista” ferrenho que se orgulha de uma camisola que nunca despiu: a do Futebol Clube do Porto, justamente.
4 — A qualquer lado onde vou lembro-me que ele poderia lá estar também. Miguel Veiga faz falta. Há ausências que se nos colam à pele. O Miguel faz falta naquele célebre quinto andar da Foz, onde tanta vida ocorreu e decorreu e tantos mundos se fizeram e desfizeram, faz falta por entre as suas mais de 400 telas, faz falta na varanda debruçada sobre as brumas do Douro quando o rio casa com o oceano e cheira sempre a maresia.