E eis que o inevitável aconteceu. Seria uma questão de tempo: o crescimento do Chega conduziria a uma situação em que o PSD necessitaria dele para viabilizar um Governo de direita. Antes das eleições regionais nos Açores, a direita “moderada” mantinha-se maioritariamente em silêncio perante o fenómeno Chega. Um impasse conveniente, tendo em conta o crescimento do partido. Mais cedo do que o previsto, a direita foi obrigada a tomar uma posição.

O acordo nos Açores gerou uma hecatombe de críticas em todo o espectro político. Em resposta à esquerda, a direita usou o trunfo óbvio: em 2015, o PS negociou um acordo, ainda mais criticável, com partidos que defendem regimes autoritários e onde as liberdades e o Estado de Direito ainda são meras utopias, desde a China e a Coreia do Norte à Venezuela e Cuba, ou mesmo passando por Angola. O argumento é válido, mas revela alguma cobardia. Se para grande parte da esquerda democrática – que tanto lutou pelo 25 de novembro de 1975 que esta semana comemoramos – a geringonça de esquerda foi um acordo “natural”, cabe-lhes a eles conviverem com esse peso. Tal facto descredibiliza-os enquanto críticos da solução governativa nos Açores, mas não a justifica. A quem se situa à direita, os erros do passado de outros servem de pouco consolo para os seus.

Os partidos que contemplam esta solução governativa têm de enfrentar um contexto mais adverso (ainda que em menor escala, uma vez que resulta de uma eleição regional) na opinião pública do que a geringonça encontrou em 2015. A nossa história moldou uma sociedade que sempre tolerou melhor a extrema-esquerda e uma comunicação social marcadamente canhota. A realidade é o que é, cabe à direita adaptar-se a ela e justificar ao eleitorado as suas opções políticas, evitando o refúgio em argumentos primários.

À direita, as opiniões sobre a solução encontrada nos Açores caracterizam-se em três tipos. Por um lado, aqueles que pretendem combater o Chega, negando qualquer diálogo com um partido “iliberal”, entre os quais muitos dos subscritores de um manifesto publicado no jornal Público recentemente. Por outro, aqueles que reconhecem que o Chega revela posições racistas e xenófobas (André Ventura relembrou há dias, uma vez mais, o seu conceito de liberdade, a propósito de Joacine: “É aquilo que eu sempre disse. Na Guiné é que estava bem.”), mas que provavelmente acreditam na sua domesticação. Encaram, por isso, o acordo nos Açores como meio para incentivar à moderação do partido, responsabilizando-o e comprometendo-o com as decisões governativas. O arquipélago torna-se, assim, num laboratório experimental para esta solução à direita. Seria a preparação de um caminho para um acordo alargado em 2023 no Governo nacional, esperando que nessa altura a solução encontrada não seja tão surpreendente nem criticável. Por fim, e que nunca será admitido, existe a abordagem de “vender a alma ao diabo”, alimentado pela ganância do poder a qualquer custo. E este parece-me ser o problema do PSD, que não resistiu a um fruto tão apetecível: assumir o Governo regional que era liderado pelo PS há 24 anos.

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Rui Rio esteve ao longo dos últimos anos mais próximo do PS do que do CDS, quanto mais do Chega. O apelo implícito a um Bloco Central esteve sempre presente, sujeitando-se às críticas constantes pela fraca oposição, inclusive as minhas. No entanto, logo que surgiu uma oportunidade, cheirando a poder nas belas ilhas dos Açores, piscou o olho ao Chega. Pode-se debater a razoabilidade do acordo, mas é inegável a profunda incoerência do líder social-democrata. Ora diz que o PSD é um partido de centrocomeçando, até, no centro-esquerda –, ora faz acordo com um partido que tem, segundo o próprio, “algumas posições extremistas e algumas posições de perfil populista. Aceitar apoios não é pecado, concordo com Morais Sarmento, Vice-Presidente dos sociais-democratas. Neste caso, houve mais do que um apoio unidirecional do Chega ao PSD, houve um acordo entre os dois partidos, com clara intervenção dos órgãos nacionais, sobrepondo-se aos regionais. Acordo é sinónimo de cedências que, creio, nunca serão integralmente conhecidas – talvez nem tenham ficado completamente escritas.

Para um democrata e liberal, não há extremas de primeira e extremas de segunda, não há extremas boas e extremas más, mesmo quando uma delas partilha connosco a oposição feroz ao socialismo. A oposição aos dois extremos deverá ser inabalável e inegociável, enquanto representarem ameaças ao sistema democrático e à liberdade. Há linhas vermelhas inultrapassáveis, a promoção do racismo sistémico é uma delas. Perante o Chega atual, não há espaço de convergência. É o Chega que se deve moderar, não são os outros que se devem radicalizar.

A direita não está refém do Chega. Como Adolfo Mesquita Nunes escreveu, “deixaram cristalizar a tese de que sem Ventura não há alternativa”. Aliás, “se tivesse havido estratégia e vontade, a direita não corria risco de ser chumbada por Ventura, uma vez que o eleitorado jamais lhe perdoaria que viabilizasse o Governo socialista”. A mesma tese será aplicável para o futuro.

O acordo com o Chega nos Açores foi, portanto, um erro estratégico e uma precipitação grave. A “direita moderada”, encabeçada pelo PSD e CDS (para os mais distraídos, os centristas também assinaram este acordo), cavou um buraco nas suas aspirações de liderar no futuro breve um Governo nacional, ao ceder à tentação de liderar já um Governo regional com o Chega. A vitória nos Açores foi uma prenda envenenada. Terá sido o melhor para os Açores, livrando-se da governação socialista, mas o pior para a direita. Os custos políticos serão avultados e duradouros. A partir de agora, um espirro de André Ventura sentir-se-á nas hostes sociais-democratas. Serão balas perdidas que definirão o fim da era Rui Rio.

O que resulta desta novela? Uma direita partida, desnorteada, mais longe de alcançar uma maioria em 2023. Uma direita ansiando por um líder que ponha ordem na casa, que agregue, que trace as linhas vermelhas, sem receio de as tornar públicas. Uma direita credível, que dialogue sem complexos, que traga os extremos para o espaço democrático e liberal. Uma direita virada para os eleitores, olhando para além dos partidos. Uma direita que não renuncie aos seus princípios e que se afirme como alternativa ao socialismo vigente. Uma direita que prefira ser oposição responsável e digna do que um Governo descaracterizado e sem valores.