A pandemia da Covid 19 revelou graves limitações em serviços telefónicos de apoio, serviços que nos habituámos a ver como sólidos e fiáveis. A linha SNS 24 foi a primeira a vergar sob o peso do coronavírus, com grande destaque mediático. Mas houve outra linha que falhou ao meu apelo. Refiro-me à SOS – Voz Amiga, a linha dedicada ao suicídio.

Num momento de necessidade, recorri à SOS – Voz Amiga e tenho de dizer que estou muito desiludido. Telefonei com um problema real, mas não foram capazes de me ajudar. Corrijo: não quiseram ajudar.

Admito a possibilidade da culpa não ser de quem me atendeu, que possivelmente se limitou a seguir o protocolo. O problema, creio, é de comunicação institucional por parte da SOS – Voz Amiga. Afirma ser uma linha de apoio dedicada ao suicídio, mas não esclarece que o é com várias ressalvas. O site de onde tirei o número não refere limitações ao serviço, não avisa que não é para ser usado por todos.

A realidade é que a SOS – Voz Amiga só aceita falar com pessoas que estão a pensar matar-se e desejam ser demovidas. Convenhamos que é discriminatório e redutor. A minha chamada foi recusada, apenas porque liguei em nome da minha mulher. Parece que tem de ser o próprio. E em lado nenhum isso é dito. O site explicita que a linha se destina “a ajudar todos aqueles que se encontram em sofrimento causadas pela solidão, ansiedade, depressão e risco de suicídio”. Ora, desde que estou fechado em casa com a minha mulher que me encontro em grande sofrimento causado pela falta de solidão. Mais: sinto-me ansioso e deprimido com o risco de a minha mulher não se querer suicidar. Dizem que a minha interpretação é abusiva. Abusiva! Abusiva é a interpretação da minha mulher sobre a seleção do entretenimento dos serões durante a quarentena: deixei-a escolher o primeiro programa, ela optou pela Anatomia de Grey, mas na altura não avisou que era a série completa, todas as 127 temporadas. Só volto a tocar no comando se o Estado de Emergência durar até Novembro. De 2026.

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Pondero, pois, denunciar o caso à DECO. O objectivo do telefonema era uma queixa legitima. Pretendia, designadamente, queixar-me da intransigência da minha mulher ao recusar ingerir o cocktail de medicamentos que lhe havia preparado. Diz que era só o que faltava, interromper o visionamento da série 6 que é uma das mais divertidas. Acho que é mentira, está é a gozar comigo. Pior que a má vontade da minha mulher – que ignorou, com acinte, o mini-chapéu de sol com que enfeitei o copo – foi a má vontade do operador, um profissional treinado para ouvir todo o tipo de revelações. Magoou. Não era preciso desligar-me a chamada na cara. Ainda por cima, pareceu-me ser um bom ouvinte, empático e experiente. Alguém que, estou certo, já falou com muitas pessoas em situação delicada e que sabe o que precisam de ouvir. Justamente o tipo de profissional que teria boas dicas para me ajudar a convencer a minha mulher a acabar com o meu desespero.

Se se quer manter relevante em tempos de Covid 19, a SOS – Voz Amiga tem de alargar o público-alvo. Talvez ter uma daquelas gravações a dizer “se se quer suicidar, prima a tecla 1”, “se quer que alguém se suicide, prima a tecla 2”, “se deseja falar directamente com um operador, aguarde. A não ser que esteja muito ansioso. Nesse caso, prima a tecla 9”.

Iam receber muitas chamadas de pessoas que, como eu, estão aflitas com a impossibilidade de o cônjuge desamparar a loja. Com o Estado de Emergência e consequente proibição de sair de casa, a única forma de isto suceder é falecendo. A pista está no nome: confinamento. Só se tolera, lá está, com finamento.

Esperava mais da SOS – Voz Amiga. Tudo bem, não me quis ajudar a convencer a minha mulher. Eu arranjaria forma de me desenrascar. Mas custava muito dar alguns conselhos profissionais sobre como, depois de o fazer, me desembaraçar do corpo? Durante a pandemia é mais complicado do que parece. Se com total liberdade de circulação já é difícil, imagine-se agora.

A opção óbvia é o desmembramento e conservação no frio, até terminar a quarentena. Mas isso é fácil dizer. Arranjar cabrito na cozinha já é maçador, imagine-se um humano. Quem é que tem bancada para isso? E cutelo? O humano pode não ter bedum, mas tem articulações muito rijas. Depois, mesmo conseguindo desmanchar o cadáver, o que se faz às peças? Estamos a falar de lombo, miúdos, duas pás, dois chambões, acém, vazia, alcatra, aba para estufar, etc. Numa situação normal, talvez até desse, mas não podemos esquecer que as pessoas estão com os frigoríficos cheios dos congelados que açambarcaram em Março. Para acondicionar a mulher, tenho de fazer um banquete com 700 douradinhos. Não admira que em segundo lugar do top de vendas da Worten online estejam as arcas frigoríficas. Em primeiro estão as motoserras.

Resta a hipótese, arriscada, de sair de casa para me livrar do corpo. Com o grau de vigilância dos meus vizinhos, é impossível:

– Boa noite, vizinho. Quem é esse indivíduo que está a ajudá-lo a carregar o corpo da sua esposa?

– Olá, vizinho. É um amigo.

– Não faz parte do seu agregado familiar e está em proximidade social. Está mesmo a pedir uma denúncia.

– Não faça isso, vizinho. A gente coloca uma máscara, ok? Está a ver?

– Mesmo assim… Tem declaração da entidade patronal a dizer que esta tarefa não pode ser efectuada em tele-trabalho?

– Ele vai pedir e depois eu envio-lhe, pode ser?

– Com carimbo da firma, se faz favor. Isto não podem ser uns a sacrificarem-se em casa, enquanto outros furam a quarentena para ajudar um amigo a desenvencilhar-se do corpo da esposa. Já agora, quanto é que media?

– Desculpe?

– A esposa, quanto é que media?

– Sei lá. Um metro e 65, talvez.

– Pois. O vizinho a segurar debaixo dos braços, o seu amigo nas pernas, não estão a guardar os 2 metros de distância.

– Como é que posso transportar o cadáver da minha mulher sem violar as regras de distanciamento social?

– Porque é que não agarra a esposa pelas mãos? Além do metro e 65, ainda tem o comprimento dos braços.

– Assim? Obrigado pela ajuda.

– De nada! Nestas alturas difíceis, a boa vizinhança é fundamental. Boa noite. E os pêsames.

– Obrigado, vizinho.

– Ah, espere! O corpo da esposa está a pingar sangue.

– A sério? Eu limpo quando voltar.

– Deixe estar, eu limpo. Tenho aqui à porta a lixívia que uso para bochechar quando respiro perto da porta da rua.

– Desculpe a chatice.

– Não é chatice nenhuma. A Covid não se transmite por sangue. A não ser, claro, se a pessoa tossir sangue. Mas não é o caso da sua esposa. Que não tem tosse. O sangue dela vem do golpe na nuca. Portanto, não há perigo. Basta seguirmos as indicações da DGS e cumprir escrupulosamente o decreto do Estado de Emergência, não é preciso sermos fanáticos. Só mais uma coisa, vizinho – e desculpe estar a meter-me. Eu bem tento não ouvir o que se passa na casa dos outros, mas estas paredes são muito finas. No outro dia o som foi tão alto que não pude evitar. O vizinho espirrou com violência e, pelo barulho, não pôs o cotovelo à frente.

– Pois…

– Mais: a sua filha disse “santinho!”, o que significa que estava ao pé de si. Veja lá isso, vizinho. Não arrisque a saúde da sua filha. Coitada da rapariga, ainda por cima acaba de ficar órfã.