Exmo. Senhor
Presidente da Academia de Ciências de Portugal Continental e Ilhas Adjacentes,

Tomo a liberdade de me dirigir a V. Ex.ª com a plena consciência de que o faço por motivos de força maior, de interesse verdadeiramente nacional e patriótico, diria até. Não me atreveria, de outro modo, a importuná-lo, a si e à instituição que superiormente dirige, que respeito e venero como o faria perante Isaac Newton e a lendária The Royal Society, expoentes maiores e inultrapassáveis do amor à Verdade e à Ciência.

Se o faço é porque, nas palavras desse outro paladino das verdades eternas e irrefutáveis, o Senhor de La Palice, não poderia deixar de o fazer. É que Portugal está na iminência de revelar ao Mundo um novo prodígio científico, que paira ainda apenas nos domínios etéreos dos espíritos maiores e intangíveis dos nossos Homens de Estado e de Governo, que, sendo-lhes compreensivelmente difícil baixar à mundanidade, obrigam-me a mim, simples mortal inteiramente desprovido de qualquer talento mas arguto observador, a fazê-lo: Portugal acaba de gerar um novo e surpreendente ramo da Ciência, graças ao desempenho superior desses Homens geniais, que dá pelo nome singelo, mas doravante imortal, de Confinamentologia. Explicarei, em seguida, do que se trata e para que serve esse novo ramo do saber.

Começarei por enunciar o objeto e o escopo dessa nova matéria. Numa definição sucinta, a Confinamentologia é a ciência que estuda e disciplina a atividade humana de mandar recolher ao domicílio sociedades inteiras, sem que se saiba exatamente porquê e para quê, daí resultando vantagens mal imaginadas e prejuízos bem palpáveis.

A História desta nova Ciência tem um assinalável e já antigo percurso, tendo começado experimentalmente, em 1975, no nosso país, com o fecho dos deputados constituintes na Assembleia da República, de alguns partidos e órgãos de comunicação social, e com a tentativa de encerrar, também por essa altura, os “fascistas” no Campo Pequeno, de que infelizmente não resultaram consequências exitosas, que não fosse o prenúncio dos grandes momentos que hoje todos testemunhamos. Mas a Ciência faz-se mesmo assim, de tentativa, erro e nova tentativa, e se hoje o Governo encerrou domiciliariamente todo o país, foi porque nesse tempo remoto se começaram a ensaiar aqueles que seriam os fundamentos rudimentares desta nova Ciência.

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Ora nos dias de hoje, depois de semanas e meses de medidas restritivas, acompanhadas de ameaças de sanções pecuniárias e criminais, chegámos ao momento sublime em que todos os portugueses terão de ficar fechados em casa, com exceção daqueles que podem continuar cá fora, a saber, os que não sejam donos de restaurantes, cabeleireiros, circos e casas de massagens. Parece pouco e, se calhar, até é, mas foi o que se arranjou. Vozes sibilinas fazem constar que certos membros do Governo tiveram más experiências, sobretudo digestivas, em estabelecimentos comerciais desse género, e alguns apontam até o exótico novo penteado do primeiro-ministro como causador de uma suposta perseguição aos artistas capilares, mas certamente não passam de vozes da reação.

Dir-se-á: para que servem mais e mais restrições, quando, quase um ano depois do começo das  muitas que se lhes antecederam, repartidas por diversos estados de emergência, calamidade e deveres cívicos sortidos, entre as quais é justo destacar a subtil decisão de encerrar supermercados nas tardes dos fins-de-semana e de proibir a venda de bebidas alcoólicas nesses mesmos locais depois das 20,00h, os números de contágio epidémico e das “fatalidades” (na elegante linguagem dominical do Dr. Paulo Portas) continuam a subir exponencialmente? Para que nos servem elas, se continuarão a circular, por aí, a miudagem das escolas e universidades (a tal faixa dos 20 aos 29 anos que, segundo o primeiro-ministro Costa, é quem agora mais transmite o vírus), transportes públicos apinhados de gente e todos quantos se façam municiar de magnas cartas de liberdade condicional, se e a caminho de incontáveis postos de trabalho autorizados? Para que nos servem elas, quando agora conseguimos até alcançar o admirável paradoxo de abrirmos, em rigoroso estado de emergência, os supermercados nos mesmos períodos em que estavam fechados quando vivíamos em liberdade? E – insinuam outros – por que não se seguiu uma estratégia de confinamento parcial direcionado aos mais vulneráveis, de reforço das capacidades humanas e logísticas do SNS, de planeamento cuidado de utilização de todos os recursos de saúde existentes no país – públicos, sociais ou privados – e até de distribuição atempada das vacinas da gripe comum? Tudo isto são balelas, Senhor Presidente, saídas da mente de espíritos sombrios e obscurantistas, de inimigos da Ciência, de adversários do Progresso e da Autoridade estabelecida. Se isso tivesse sido feito, como poderia Portugal ter chegado à evidência empírica que nos permitiu revelar ao mundo a nova Confinamentologia? Com que pretexto poderíamos ter mandado recolher ao domicílio todos os portugueses, ameaçá-los com as penas do inferno, encerrar todo o (pouco) comércio de que o país ainda dispunha e impedir que eles se enfrascassem com álcoois comprados a desoras nas grandes superfícies comerciais? Obviamente, não poderíamos, e que enorme prejuízo para a causa pública daí adviria!

Graças, pois, aos esforços conjugados dos Dr. António Costa, do Presidente Marcelo, da Ministra da Saúde, da Dra. Graça Freitas e daquele Senhor cientista especialista em compotas, cujo nome não se me ocorre, chegámos a este fim maior. A Confinamentologia ergue-se, pois então, como uma Ciência estabelecida, que será muito útil para o futuro, sempre que os indígenas de qualquer país não se submetam, voluntária e humildemente, ao múnus fatal, imperial e soberanamente ditado pelos seus governantes: assim que levantem cabelo e cabeça, mandam-se para casa, com máscara nos focinhos patibulares e gel nas patas superiores, expressões de que me penitencio perante V. Ex.ª, mas que uso por não encontrar outras melhores para designar os fácies ingratos e os membros encardidos dessa gente mal-agradecida. Ela submeterá ao seu saber e labor muitas outras disciplinas do conhecimento humano, como a Política, a Economia, o Direito, a Medicina, a Química ou até a Religião, já que, à falta de melhor, é na fé irracional do que nos advém do Altíssimo (do Governo, entendamo-nos) que decorre a nossa providencial obediência nestas matérias.

Resta-me, Senhor Presidente, pedir-lhe para que se bata, com denodo e coragem, pelo reconhecimento universal deste prodígio científico que Portugal generosamente doará à Humanidade, só comparável a essa outra maravilha científica – que também tem deslumbrado o Mundo – que o Ministro Nuno Santos nos concedeu nas Ciências da Administração, ao conceber e revelar um método infalível para afundar uma companhia de aviação e, por arrasto, todo um país. Afundar, ou melhor, despenhar, já que não se trata de navios, mas de aviões. Sejamos rigorosos, como o exige o método científico.

Cumprimenta-o, com gratidão e estupefacta veneração, o

(Assinatura legível)