Na noite do dia 10 de Março, à medida que os resultados eleitorais iam surgindo, nas televisões e nas redes sociais quase se não falou na Iniciativa Liberal. De tempos a tempos o partido elegia um deputado e isso era anunciado sem grande interesse, entusiasmo ou desilusão. Principalmente, sem particular atenção por parte de jornalistas e comentadores. Os líderes partidários fora sucessivamente falando, de Mariana e Tavares até Ventura, Santos e Montenegro, mas não se deu conta de que Rocha tivesse sido ouvido pelo país. Poderá explicar-se isto porque a noite foi absorvida por duas grandes questões: quem venceria as eleições e quanto atingiria o Chega. Mas isto não é suficiente para explicar a indiferença a que a Iniciativa Liberal foi votada na noite eleitoral, porque prestou-se atenção a Mariana Mortágua, a Rui Tavares, a Paulo Raimundo e até a Inês Sousa Real. Cada um deles tinha o seu motivo de interesse: Mariana testava a sua liderança e a sobrevivência do Bloco; Tavares comprovava o crescimento do Livre e de uma nova esquerda extremada mas, paradoxalmente, soft; Raimundo e Sousa Real faziam prova de vida. A IL, em contrapartida, parecia não ter interesse nenhum para quem seguia a noite, ou seja, parecia ser vista como nada acrescentando a estas eleições.

É estranho que assim seja. Nas últimas legislativas o partido aumentou consideravelmente o número de votos e de deputados, e criou a esperança legítima de que um partido liberal era possível em Portugal, e que poderia, num futuro muito próximo, influenciar o governo e as políticas públicas com princípios liberais. Para que isso pudesse suceder a receita não seria complexa. Bastaria aprofundar o que de bom tinha sido feito nos últimos três anos e evitar os disparates que são comuns a certos partidos políticos e organizações juvenis, que mais não são do que grupos interesseiros de meia-dúzia de amigos e conhecidos. O partido devia apresentar-se à sociedade e aos eleitores, que tinham acabado de lhe dar uma enorme prova de confiança, como um projeto adulto, de pessoas inteligentes e maduras, enfermadas por valores profundos de liberdade. Ou seja, como um projeto confiável que respeitava a confiança dada pelo eleitorado. Cotrim seria um excelente líder, Guimarães Pinto teria uma tribuna para brilhar, e outras lideranças e quadros de valor acabariam por emergir naturalmente aos olhos das pessoas comuns. O futuro da IL, se bem governada, só poderia ser o dos seus congéneres europeus: crescer e tornar-se indispensável numa governação ao centro e à direita. Todos teríamos ganho com isso.

Mas não foi, infelizmente, isso que aconteceu. Muito pouco tempo depois do excelente resultado eleitoral, começaram os golpes orquestrados de palácio e o liberalismo parece só ter continuado nos discursos parlamentares de Guimarães Pinto e nalguns soundbites lustrosamente gravados em outdoors.

O primeiro, que inquinou tudo o que veio a seguir, foi o modo aparelhista como João Cotrim de Figueiredo abandonou a liderança e nomeou Rui Rocha seu herdeiro natural. Num momento elevado da sua posição no partido, Cotrim de Figueiredo – por razões que o grande público ainda desconhece – fartou-se de ser líder da IL e saiu com um acordo quanto ao seu futuro político que, obviamente, passará por Bruxelas. Neste golpe de secretaria não se contava com oposição. Por isso, quando Carla Castro teve a ousadia de apresentar a sua candidatura ao lugar que estava destinado a Rocha, o diretório franziu o sobreolho com tamanha desfaçatez.

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O segundo foi o modo obsceno como o vencedor Rui Rocha e os seus apaniguados trataram Carla Castro, derrotada na Convenção com consideráveis 44% de votos, e, por via dela, trataram os militantes do partido que nela tinham votado. Cinicamente, quando chegou a formação das listas de deputados, mandaram um amanuense convidá-la para um lugar “entre o 5º e o 7º” de Lisboa. Mas, francamente, que convite foi este? Foi para 5º? Para 6º? Ou para 7º? Carla Castro poderia escolher o lugar, ou deveria limitar-se a dizer que sim, que humildemente aceitaria ingressar nas listas, e ficar à espera que lhe dissessem qual era a posição que o diretório lhe tinha destinado? E porque lhe tiraram o segundo lugar, que fora anteriormente o seu, na mesma lista? Foi uma má deputada? Não consta. Foi substituída por enormes talentos com os quais não poderia ombrear? Os eleitores responderam, no dia 10, a esta última questão.

A consequência deste ato verdadeiramente infame foi a demissão sucessiva de dirigentes e militantes do partido, que não gostaram de ver assim tratada a candidata que tinham apoiado. Os poucos que se mantiveram no partido foram condenados à irrelevância, deixaram de contar e viram-se afastados de posições de responsabilidade. Rui Rocha deu a cara por esta verdadeira limpeza de balneário e, quando alguém lhe perguntava se não se preocupava com a sangria de dirigentes e militantes, displicentemente respondia que não, que por cada um que saía entravam pelo menos dez. Uma grande vitória, portanto.

Mas não foram somente as questões pessoais que o diretório da Iniciativa Liberal tratou com os pés. Foram também, ou sobretudo, as ideológicas. Um partido liberal que tinha ganho, durante a liderança de Guimarães Pinto, uma espessura muito interessante nesse domínio, acabou por se deixar perder num wokismo sobre políticas de género e questões de identidade sexual, tendo-se metido em trapalhadas graves, como as que se prendiam com a legislação sobre a autodeterminação de género em ambiente escolar, isto é, entre crianças e jovens ainda em formação psicológica e física. Sempre que eram suscitadas dúvidas ou eram criticadas as posições do partido nessas e noutras matérias, aparecia alguém, de dedinho esticado e vozinha esganiçada, para impor o novo diktat ideológico: a IL era “liberal em toda a linha”. Quem não gostasse que fosse para outras paragens. Foi isso mesmo que, infelizmente, muitos fizeram. A IL parece não se ter importado com isso. Pelas redes sociais e pela comunicação social houve mesmo quem se regozijasse com as saídas dos “conservadores”. Segundo esta novíssima doutrina, liberalismo e conservadorismo são como água e azeite: não combinam.

Vamos, então, a conclusões. A sensação que se tem, ao fim destes anos de existência, é que a Iniciativa Liberal é hoje ferreamente dirigida por um reduzido grupo de pessoas que se apropriaram do partido e que, ao contrário das ideias do mercado-livre, não apreciam a concorrência dentro de portas. A forma como, por exemplo, as listas foram compostas, a partir de um diretório central denominado «Comissão Executiva», sem qualquer participação decisiva local, não é própria de um partido aberto, plural e integrador, como deve ser uma organização política liberal, mas do chamado «centralismo democrático» do PCP e da extrema-esquerda. As estruturas que cultuam o liberalismo, pelo contrário, devem pautar-se pela descentralização, pelo envolvimento de todos os interessados na formação das decisões e, sobretudo, pelo respeito pela opinião contrária e pela divergência. Duvidam disto? Vão ler Alexandre Herculano, que também era um liberal em toda a linha.

É evidente que, nas últimas horas, tem sido feito um enorme esforço para considerar muito bom o resultado alcançado nestas eleições. Fala-se num aumento de cerca de 30.000 votos e na manutenção dos lugares no Parlamento. Ignora-se, ou faz-se de conta que se ignora, que o país virou à direita, que os votos na direita aumentaram exponencialmente em relação a 2022, e que a IL tinha a obrigação de crescer não apenas em votos, mas em número de deputados e, sobretudo, em influência política. Já não falo nos 15 mandatos que Rui Rocha prometera para a sua presidência, nem tão pouco nos 12 que apontara como objetivo desta eleição, mas pelo menos em não perder deputados, como aconteceu em Lisboa, e tornar-se decisiva para a governação que aí poderá vir. Infelizmente, não se aproximou do número de deputados prometido e tornou-se absolutamente irrelevante para a formação de qualquer governo.

Claro está que se poderá festejar este resultado e anunciar dias gloriosos e amanhãs que cantam para o partido. O PCP, que desde 1975 ainda não perdeu nenhuma eleição, também costuma fazer isso.