Desde que se começou a perceber que nenhuma formação da direita partidária conseguirá alcançar, por si só ou em coligação natural (AD+IL), uma maioria absoluta parlamentar, que ressoa entre nós um mantra para nos convencer de que um governo de maioria relativa da AD será viável depois do dia 10 de Março, caso vença o ato eleitoral nessas condições.

Para tanto, pressupõe-se a abstenção do Chega, que todas as sondagens indicam que alcançará um elevadíssimo número de votos e de deputados, ou do Partido Socialista, ou de ambos nas votações do programa e dos orçamentos do futuro governo. Como a AD não quer conversas com o Chega, Luís Montenegro tem-se multiplicado em insistências para que Pedro Nuno Santos assuma o compromisso público de viabilizar um governo minoritário chefiado por si, para que a «extrema-direita» não chegue ao poder. Até ao momento, o PS foi, no limite, muito lacónico a esse respeito. No debate entre Montenegro e Pedro Nuno, este último admitiu que poderá considerar essa hipótese. Mas nos Açores, um belíssimo ensaio para o que por cá se poderá passar, já disse que não viabilizará um governo minoritário de Bolieiro. No continente, até poderá fazê-lo num primeiro orçamento, mas será somente por uma razão tática para desgastar o PSD e fazer cair o governo no momento que julgar mais adequado aos interesses socialistas.

Há uma aspeto que os responsáveis políticos da direita parecem desconsiderar, mas que é absolutamente determinante: é que, desde 2015, com a formação da geringonça e o fim da cerca sanitária do PS à extrema-esquerda, António Costa quebrou um velho princípio da nossa Constituição política material, que dificilmente voltará a ser reposto: quem ganha governa. Desde aí, ficou evidente, não só no governo central do país como também nos dois governos regionais, que sem maiorias parlamentares absolutas não haverá governos sustentáveis. Na  verdade, se até 2015, ainda antes desse golpe de asa de António Costa, já era muito difícil conseguir estabilidade governativa sem uma maioria parlamentar absoluta, a partir de então passou a ser totalmente impossível. De resto, mesmo antes disso, os governos de maioria relativa nunca gozaram de boa saúde tendo sido sempre circunstanciais e de transição. Vejamo-los.

Os I e II Governos constitucionais (Mário Soares) não cumpriram a legislatura e não conseguiram sobreviver por mais de três anos (1976-1978). O X Governo, o primeiro de Aníbal Cavaco Silva ainda sem maioria absoluta, não chegou aos dois anos de existência (1985-1987). O XIII governo, chefiado por António Guterres, era também de maioria relativa, embora o PS tivesse uma confortável bancada no Parlamento (112 deputados) e aí houvesse uma maioria parlamentar à esquerda. Foi, em toda a história da nossa democracia, o único governo minoritário que chegou ao fim da legislatura (1995-1999). Mas, para além do que já foi dito, há que acrescentar que o PSD era liderado por um velho amigo do primeiro-ministro chamado Marcelo Rebelo de Sousa, o que permitiu suavizar muito a relação governo-oposição. Contudo, o governo seguinte de Guterres, o XIV Governo constitucional, ainda que dispondo de mais três deputados (115) a apoiá-lo no parlamento do que o anterior e ficando apenas a um da mirífica maioria absoluta, já viveu em crise permanente, tendo de se socorrer de uma solução espúria, o célebre «deputado limiano», para não ser derrubado logo no início de funções. Mesmo assim, não conseguiu chegar ao fim do seu mandato (1999-2002), decompondo-se e submergindo no pântano político em que o primeiro-ministro se declarou enterrado após umas eleições autárquicas que lhe correram francamente mal. Já no século XXI tivemos três governos de maioria relativa: o XVIII, de José Sócrates, que não chegou aos dois anos de existência (2009-2011); o XXI, de António Costa, em que o PS não conquistou uma maioria absoluta mas negociou e conseguiu uma maioria parlamentar; e o XXII (2019-2022), do mesmo partido e primeiro-ministro mas já sem a aliança à esquerda, que caiu ao fim de menos de dois anos e meio de iniciar funções.

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Tornou-se assim determinante, para a sobrevivência de um governo e para que este possa realizar os seus objetivos programáticos, a constituição de maiorias parlamentares expressas, isto é, ter o apoio de 116 deputados ou mais. Sem isso, será um inferno governar, porque torna-se preciso negociar com a oposição orçamentos todos os anos, assim como, uma a uma, as políticas públicas que se querem aplicar. De todo o modo, por mais talentoso que sejam os primeiros-ministros, a história do regime democrático português demonstra que os governos minoritários não chegam ao fim e que, pior do que isso, não conseguem fazer as reformas de que o País carece e que eles propuseram ao país. Se estudarmos a ação desses governos, veremos que todos os de Soares, Cavaco, Guterres, Sócrates e Costa que foram minoritários, com exceção do já mencionado primeiro governo de António Guterres, não cumpriram as legislaturas. Pior do que isso, não fizeram quaisquer reformas estruturais, condenando o país ao imobilismo, os eleitores à desilusão e Portugal e os portugueses ao atraso e à pobreza. Sublinhe-se, para que não haja equívocos, que o governo da geringonça tinha maioria no parlamento, ainda que negociada e acordada depois do ato eleitoral. Não sendo um governo de maioria parlamentar de um só partido, foi um governo de maioria parlamentar de uma coligação partidária pós-eleitoral. Isso fez toda a diferença.

E é por isto que não se vê como irá sobreviver um hipotético governo da AD, chefiado por Luís Montenegro e eventualmente apoiado pela Iniciativa Liberal, caso a coligação partidária vença as eleições de 10 de Março sem obter 116 mandatos parlamentares. Mesmo que consiga aprovar o programa e o primeiro orçamento com abstenções do PS e do Chega, como irá Montenegro governar? Que reformas levará a cabo sem ter deputados suficientes para as aprovar? Porque uma coisa é deixar taticamente passar um orçamento ou até dois, outra será aprovar as grandes medidas programáticas que distinguem os partidos e as forças políticas, sem o que tudo se transforma numa pastosa amálgama indiferenciada de interesses indistintos. Alguém imagina que o PS de Pedro Nuno Santos se abstenha face à privatização da TAP, à criação de novas PPPs na saúde ou na educação, à introdução de sistemas privados na segurança social, à reversão das leis socialistas sobre o Alojamento Local ou noutras medidas que necessariamente devem compor o programa de um governo não socialista de centro-direita? Pois é. Como é óbvio, isso não será possível. O que imporá a existência de governos de transição (de novo, o caso dos Açores), sem fulgor reformista, e levará a uma incapacidade epidérmica para responder às grandes questões nacionais e ao consequente agravamento das várias crises sectoriais, à insatisfação das corporações profissionais, ao aumento da contestação e, a prazo curto, à queda ingloriosa do executivo.

Daí até de novo se trespassar o poder para o Partido Socialista, que lembrará a “estabilidade” dos anos de António Costa (discurso que, aliás, já está a ser posto em marcha), será uma questão de tempo. Ou, em alternativa, se o eleitorado continuar a rejeitar uma solução socialista e se o PSD não conseguir oferecer uma alternativa sólida de governo ao PS, a chefia da direita poderá mesmo deslocar-se para o Chega. A estratégia de traçar linhas vermelhas a um partido que, ao que se julga, representa já perto de 20% do sufrágio, trará sérias consequências para toda a direita e até para o regime. É que, sem impor responsabilidades políticas concretas a um partido que medra na contestação, que dela se alimenta e que com ela cresce desalmadamente, não se entende como se poderá estancar esse percurso ascendente. É, aliás, isso mesmo que aconteceu e está a acontecer em França, com o quase desaparecimento das formações partidárias tradicionais de centro-esquerda e centro-direita, e a sua substituição por outras provindas dos extremos. Todas as sondagens mais recentes sobre as próximas eleições presidenciais francesas antecipam a vitória de Marine Le Pen à primeira volta. Entre nós, se não houver inteligência, sucederá algo parecido. Mais cedo ou mais tarde.