1 Ter um cargo oficial ajuda, temo-lo visto. É como a via verde: passa-se depressa e não se dá pela fila dos outros. Alem de que o estar em funções, ajuda à verosimilhança no papel de “novo herói”, no caso, o de (ideal) candidato “presidencial”.
Com o gosto que os portugueses têm por fardas, a conhecida (instintiva?) necessidade de uma autoridade superior a velar por eles e a omnipresença mental do sebastianismo, Gouveia e Melo não hesitou em preencher este três-em-um e pôs-se a caminho. Primeiro oficiosamente e fardado; depois oficialmente (é obviamente secundário que ainda não o tenha já afirmado cabalmente) anunciando passar à reserva.
A verdade inescapável é que começou a andar – neste caso, a nadar – primeiro fardado, péssimo exemplo pessoal e militar: ainda há dias surgiu nos écrans utilizando o seu cargo de Chefe do Estado Maior da Armada. Para se lamentar (cito de memória) que não (lhe) tivéssemos dado o devido valor ao trabalho exigido pela campanha da vacinação que foi, segundo ele, muito além de uma mera obrigação. Ao ouvi-lo foi quase uma façanha. Pode ser.
O que não deveria ser – mas foi – era surgir-nos um militar em funções de chefia e em serviço do Estado, utilizando uma e outra para a campanha presidencial que se adivinha. Que eu saiba não consta que tenha havido reparo da hierarquia face a um gesto onde se confundiam planos justamente inconfundíveis. Para alguém que é suposto querer distanciar-se politicamente do que “aí está” (a expressão é minha), por se achar diferente ou melhor ou mais impoluto, ou nada ter ver com “isto”, o gesto foi uma assinatura: afinal é igual aos “outros”. Sucede porém que mais vaidoso, desastrosamente vaidoso.
D. João II deve ter acordado a galeria de notáveis onde está com o seu riso, contagiando os seus pares celestes a rirem mais ainda (em todo o caso preferirei sempre “o que está “ do que o que pode vir em forma de aventura política não recomendável, para que fique claro). E se como se diz já há gente e equipa, o par Almirante/ D. João II estampado em papel não recomenda antes menoriza qualquer equipa. Mesmo tratando-se da Marinha, porque justamente Gouveia e Melo tem confundido a sua ambição com a sua função (e os tais da equipa, não o avisaram a tempo?)
Recordo-me de ter dedicado algumas linhas ao Sr. Almirante numa crónica aqui escrita, ainda no tempo da pandemia ou talvez mesmo já na sua recta final, quando alguém pela primeira vez me descreveu as ambições pessoais e políticas de Gouveia e Melo, afiançando-me que elas o poderiam levar ao portão do Palácio de Belém. Não acreditei claro, mas não fosse o diabo tecê-las apressei-me a estranhar publicamente tais inopinadas veleidades presidenciais: “Senhor Almirante ficaríamos assustadíssimos com o que começamos a ouvir a seu respeito” (também cito de memória mas a ideia era essa, mostrar que a surpresa era um susto).
Pediu a ora a passagem à reserva. É mais sério mas até aqui quanto abuso. Ou abusos. No plural.
2 Mário Centeno, idem. Há qualquer coisa de maviosamente acintoso na sua atitude e o acinte político, mesmo em voz delicodoce, cai sempre, sempre, mal: há muito que o governador do Banco de Portugal se entretém numa muito concertada actividade de autopromoção de uma candidatura presidencial, fundida na sua acção como responsável pelo nosso banco central (não foi justamente na qualidade de voluntarioso pré-candidato que o governador do Banco Central aceitou sentar-se um dia destes à mesa com o líder do PS?). De modo que temos tido um “Boletim”, um “editorial”, uma conferência de imprensa, um comunicado, umas idas aqui, outras ali. Realizadas com sob a égide da função e algumas concretizadas em “avisos” no mínimo controversos para não se dizer misteriosamente calculados ou quase. Como este último, ameaçando com um deficit que nenhuma instituição nacional ou internacional acompanha. Uma espécie de truque para surtir efeito pessoal e travar o centro-direita, com as presidenciais em fundo? Já houve parecido: o homem das “contas certas” acertou-as quase só à base de cativações que o fizeram brilhar lá fora, fingir cá dentro que estava tudo bem e, no intervalo, deixar de rastos os serviços públicos.
Quem diria que alguém se atreveria com este à vontade, a usar a sua função institucional para manter ao lume uma pura ambição pessoal? Marcando presença política, projectando uma candidatura no terreno, alimentando com avisos duvidosos a esperança convencida de se tornar “o” candidato socialista?
Tudo muito pouco sério.
3 A verdade é que com muita ou pouca seriedade, está um circo montado. Centrado mediaticamente na figura de Gouveia e Melo – com as televisões obsessivamente presas ao que faz e diz, e obsessivamente elaborando e discorrendo sobre candidatos e candidaturas. Os écrans presos com uma âncora ao tema das presidenciais. Sucede que “este tema” é uma estreia absoluta pelos piores motivos: de momento há muitos candidatos mas nenhum é indiscutível nem indispensável e eis uma diferença de tomo. Até hoje qualquer dos cinco presidentes que o país conheceu era maior que as fronteiras do seu partido, ou do seu eleitorado. Independentemente do modo como cada um veio a exercer o seu cargo, o ponto de partida recomendava-os como figuras nacionais. Tinham experiência, currículo político, conheciam bem o país, sabiam do que se falava quando se falava do mundo. Estavam noutro patamar, justamente aquele patamar de onde se pode “naturalmente” partir para um voo desta responsabilidade e deste alcance. Mesmo Eanes – menos conhecido – tinha feito o 25 de Novembro, disciplinado as Forças Armadas, organizado bem o seu regresso aos quartéis. Eis um currículo.
Hoje nada disto ocorre mesmo que se respeitam alguns de quem se fala, e obviamente se salvaguardem os desníveis entre os cinco, ou seis, ou sete que estão na grelha de partida. E se não estão, parece que estão. Claro que há os que ainda não falaram, não se exibiram, nem usaram as funções, não se consentiram entrar na tenda do circo.
Aguardemos. Com esperança natalícia.