Certeira e humoradamente, Mário Soares terá dito que, depois de inventar a democracia, era preciso inventar democratas. O festejo do 46º aniversário da Revolução dos Cravos, há dias, expôs o lamentável défice democrático da nossa República. As comemorações da democracia foram palco de provas de desamor à democracia por parte de diversos atores. Os políticos usaram o dia da Liberdade como arma de arremesso político – o que não é exatamente novidade –, mas fizeram-no, desta vez, de forma contraditória.

Foi, para começar, profundamente antagónico à identidade do PS o modo como Eduardo Ferro Rodrigues promoveu uma clivagem entre “abrilistas” e “adversários de Abril”, quando a verdadeira divergência na Assembleia da República era sobre o formato da cerimónia e não sobre a importância da data. Sacrificar assim a “unidade nacional” – vital no vindouro contexto de crise – por ânsias polarizadoras não foi apenas errado, foi anti-democrático. A incapacidade de Ferro Rodrigues como segunda figura do Estado não é, como já aqui escrevi, surpresa para ninguém. O Público, apesar disso, louvou Ferro por não se “remeter ao silêncio” ao ver o parlamento “atacado”, tomando por ataque a discórdia de deputados face à maioria pró-cerimónia e esquecendo que o parlamento existe para isso: minorias discordarem de maiorias. Tal não foi “um ataque” à democracia; tal é a democracia.

O outro lado da barricada, diga-se, incorreu igualmente em incongruências. É um erro, para a direita, tratar o 25 de Abril com a alergia com que a esquerda trata o 25 de Novembro. É um erro, para a direita, equiparar a fundação da democracia à celebração da Páscoa, quando a liberdade religiosa – indispensável para um católico – é salvaguardada por essa democracia. E é também um erro, para a direita, não fazer as pazes com a República se deseja realmente que o país faça as pazes com a direita. Olhem para Marcelo. Dificilmente regressaremos à vocação maioritária da AD, do cavaquismo ou da PàF sem uma incorporação das datas e dos simbolismos do regime democrático. Insistir no oposto é fazer um enorme favor à esquerda. É conferir-lhe o monopólio político da República, garantir-lhe supremacia na legitimidade, oferecer-lhe um poder único.

No passado sábado, inadvertidamente, foi isso que fez a atual direção do CDS-PP. Rodrigues dos Santos representou – e bem – o sentimento dos militantes do partido que preside e, além disso, a opinião de vários sectores da sociedade: a Assembleia dava um mau exemplo ao não cumprir as regras que impunha ao país. Mas o problema não está na posição; está na justificação. Tenho inúmeras reservas quanto ao seu argumento de que “a democracia fora do parlamento não pode valer menos do que a democracia dentro do parlamento”, quando é nesse princípio, ancestralmente, que assentam as democracias parlamentares: o poder não está na rua; está nos parlamentos. A força regular do voto coloca as decisões nos representantes; não nos representados.

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No nosso parlamento, em conferência de líderes, a posição do CDS saiu vencida. Converter essa derrota parlamentar numa vitória interna não foi, de todo, a mais prudente das opções. Liderar também é preferir as instituições à popularidade. E em Portugal precisaremos dessas instituições no tempo que aí vem. A função de um partido conservador é protegê-las, mesmo ao discordar delas. Aquilo que separa a direita institucionalista da direita populista é essa defesa das instituições e a sua consciência histórica sobre elas. Caso contrário, nada nos distinguiria, o que seria, mais uma vez, um enorme favor à esquerda.

Não é por acaso que André Ventura quer um seu “25 de Abril”. Os novos movimentos à direita não defendem nenhum património porque não têm património nenhum; os conservadores, por seu turno, têm. A preservação das tradições e da cultura portuguesa, do pluralismo democrático e ideológico, do escrutínio parlamentar, da independência e autonomia dos tribunais, do primado da lei, da liberdade de imprensa. Aquilo que nos separa do Chega é que nós não existimos apesar destas instituições, existimos para defendê-las. Em crise ou não, um conservador não propõe uma política acima dos partidos, uma comunicação sem mediação mediática ou uma democracia fora do parlamento. Propõe, por mais extraordinária que seja a circunstância, a manutenção desses mecanismos de responsabilização. É isso que nos torna diferentes dos demais e essenciais para os demais. Somos guardiões de uma liberdade construída connosco e além de nós, gigante e maior do que nós, dos outros e também nossa.

José Ribeiro e Castro, ao lembrar que Freitas do Amaral foi convidado pelas autoridades revolucionárias para o Conselho de Estado ainda antes de fundar o CDS, Rui Ramos, ao recordar a influência deste e de Amaro da Costa no governo provisório, António Nogueira Leite, ao escrever que o Serviço Nacional de Saúde deve tanto à esquerda que o decretou quanto aos governos de Sá Carneiro e Cavaco que o erigiram, Francisco Mendes da Silva, ao apontar as semelhanças entre a Constituição e o SNS de hoje e a Constituição e o SNS então preconizados pelo CDS, e Michael Seufert, ao não esquecer para quem se virou Soares na sua primeira coligação, forneceram sinais dessa boa memória: a direita também é mãe da liberdade em Portugal.

Ao longo da história, todas as democracias sonâmbulas sofreram de amnésia. No final desta legislatura, o nosso regime fará cinquenta anos. O PS, como é expectável, tentará protagonizar as comemorações do cinquentenário, materializando a fusão partido-governo-Estado que tem ditado a sua ação política. Se a direita quer ter uma palavra a dizer nesse combate, não pode prescindir de aparecer no ringue. Se, quando a sua voz for mais urgente, houver abdicado do dicionário da República, olvidando um idioma que ela própria inaugurou, a direita ficará, previsivelmente, a falar sozinha. Ao fim de meia década sem ganhar uma eleição, não creio que se possa dar a esse luxo.

Há 46 anos, ajudámos a inventar uma democracia; 46 anos depois, precisamos de continuar democratas.