Estou a ler um livrinho pequenino chamado Contra o fanatismo, do escritor israelita Amos Oz. Ele diz que o fanatismo começa na superioridade moral que o fanático supõe deter em relação ao Outro. E isto encontra-se até nas coisas mais comezinhas, traduzindo-se sempre na tentativa de “salvar” o outro de si mesmo, quando na verdade se trata apenas de poder e domínio.

Ora, aquele que detém a Lei, isto é, a Verdade, sente-se empoderado por ela. Mas o poder, é sabido, corrompe. Corrompe o poder do rei, como corrompe o do funcionário de repartição. O poder sempre corrompe o “zé ninguém”, isto é, aquele que precisa desse poder para assumir um ascendente qualquer sobre o Outro, para se afirmar.

No conflito israelo-palestiniano há duas partes que, como diz Oz, “têm razão”. O problema é quando ter razão significa tornar-se irredutível à razão do outro. O fanatismo, que medra na ignorância mais abjeta, é incapaz de admitir que o outro também possa ter razão. Mas Cristo ensinou que “o homem não foi feito para o sábado, mas o sábado para o homem”, e também que é preciso “tirar a trave” do próprio olho antes de pretender “tirar o argueiro” do olho do irmão. Quer dizer, a lei não está primeiro que a humanidade do Homem, nem, em rigor, qualquer verdade feita ideologia; e a humildade e o serviço estão acima de qualquer poder ou dominação. A Verdade existe, mas não se pode deter ou possuir; porque ela é antes de mais caminho (“Eu sou o caminho, a Verdade e a Vida…”, diz Jesus). Caminho feito em conjunto a partir da verdadeira liberdade, que não se trata de “letra que mata” mas de “espírito que vivifica” (S. Paulo).

Os Hamas e demais jihads apaniguadas são um grave entrave à resolução do conflito israelo-palestiniano. Expulsá-los da faixa de Gaza entregando-a à Autoridade Palestiniana talvez não seja uma ideia absurda. A AP, não obstante a corrupção que a mina, é pelo menos uma interlocutora mais razoável.

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Os judeus têm todo o direito a viver na terra dos seus antepassados, já que a Europa e o mundo turco-árabe nunca os quiseram verdadeiramente. Os árabes, por outro lado, quer muçulmanos, quer cristãos, também têm direito a viver na terra onde, desde a conquista islâmica da Palestina pelo califa Omar, no séc. VII, foram criando raízes.

Se no Líbano, na Jordânia, na Síria, países vizinhos de Israel, os árabes dos campos de refugiados geridos pela ONU são tratados pelos seus próprios irmãos árabes como um problema “dos outros” (entenda-se, de Israel e da comunidade internacional), então é evidente que os palestinianos também precisam da sua pátria.

Resta saber se, no status quo atual, uma solução de dois estados é possível. Seria, se Israel retirasse da Cisjordânia, mas ao ritmo a que crescem os colonatos e a população israelita nesse território (são já cerca de 400 mil), tal não parece sequer viável. Por outro lado, na Faixa de Gaza e na Cisjordânia existe um total de 4 milhões de palestinianos, para quase 10 milhões de israelitas no território vizinho de Israel (sendo que 20% destes são árabes).

E não, não contem que Israel retire para as fronteiras anteriores à guerra de 1967, abdicando assim dos montes Golã e da cidade velha de Jerusalém. Não só porque não foram os israelitas que começaram a guerra (como também não começaram a de 48), mas também porque os montes Golã sempre foram usados pelos sírios para atacar Israel, enquanto a cidade velha tem demasiado peso simbólico para os judeus para ser simplesmente entregue sem mais, tendo sido capturada numa ação considerada de legítima defesa. Além disso, os locais sagrados do Islão, após 67, permaneceram em mãos árabes (jordanas para ser exato), embora saibamos que certos setores mais conservadores e ultraortodoxos israelitas têm posto em causa essa tutela. De resto, também não se percebe a relutância árabe em permitir que os judeus possam rezar no Pátio das Mesquitas, mas enfim, é o que é, foi o acordo estabelecido com os jordanos após a tomada de Jerusalém em 1967. A avareza religiosa também é uma forma de fanatismo, mas percebe-se que, da parte dos árabes muçulmanos, seja uma questão de identidade, tanto mais empolada quanto mais ameaçados se sentem, ainda que, historicamente, também os judeus e os cristãos possam reclamar o direito a lá rezar.

Como resolver? Ninguém sabe. Enquanto as posições se extremarem e polarizarem em fanatismos, não haverá solução senão a guerra até ao esmagamento de uma das partes. Enquanto a questão se mantiver, não apenas no âmbito de uma luta por terra, mas sobretudo de civilização, não há solução. Porque as jihads internacionais não lutam apenas por terra, nem sequer por “amor” aos seus irmãos palestinianos, mas sobretudo por ódio ao “corrupto Ocidente Satã”, do qual, de resto, Israel é o melhor, senão o único representante no Médio-Oriente, percecionado pelo grosso dos árabes como um tenebroso espinho cravado no coração do seu mundo, um resquício do colonialismo europeu que teima em não desaparecer.

Se fosse apenas uma questão de partilhar um território em boa fé, por duas comunidades inextricavelmente ligadas a ele por laços históricos incontestáveis, talvez o problema já se tivesse resolvido há muito. Talvez os árabes tivessem aceitado o plano de partição da ONU de 47 (resolução 181) que previa a criação de dois estados, um judaico e um árabe, cerca de metade do território da Palestina para cada parte, sendo que Jerusalém ficaria sob tutela internacional. Mas não só não aceitaram como se mantiveram irredutíveis na sua pretensão de domínio total sobre o território, lançando pouco depois uma guerra total do mundo árabe (Iraque, Líbano, Egipto, Síria, Transjordânia [Jordânia atual]) contra o recém-criado país. Nessa altura, a Palestina já era habitada por 500 mil judeus, produto das sucessivas vagas de colonos que foram chegando ao país desde a criação do Movimento Sionista em 1897, e em grande força depois do Holocausto.

É verdade que a Europa colonial sempre, mais ou menos, fez pouco do Médio-Oriente (os britânicos, sobretudo, consoante os seus interesses imediatos), e os árabes estavam, um pouco por toda a parte, mais ou menos escaldados e ressentidos por não serem tidos nem achados nas decisões acerca dos destinos desta região do mundo, sobretudo depois da queda e fragmentação do Império Otomano. Isso talvez explique em parte a absoluta recusa, em bloco, de qualquer compromisso, no contexto de uma instituição percecionada, para mais, como uma criação do Ocidente (a ONU), ainda frágil e sem estatuto global, criada que havia sido há menos de três anos pelos vencedores da Segunda Grande Guerra.

Porém, a irredutibilidade não só não lhes trouxe nenhum resultado, como permitiu que, guerra a guerra, conflito a conflito, Israel fosse conquistando novos territórios e consolidando a sua predominância na Palestina. E nada aponta para que venha a ser diferente no futuro.

O problema demográfico vai agudizar-se. São hoje quase 10 milhões de israelitas para 4 milhões de palestinianos, sem contar com os cerca de 1,5 milhões espalhados pelos 68 campos de refugiados no Líbano, Síria, Jordânia, Faixa de Gaza e Cisjordânia (dados da ONU). Ou seja, quase 16 milhões de pessoas, e a crescer, umas já lá vivendo, outras com pretensão a lá viver, num território já de si muito pequeno, que, como se não bastasse, tem escassas fontes de água (se os israelitas não usassem processos de dessalinização da água do mar, teriam de contentar-se com pouco mais do que o “minúsculo” Mar da Galileia, que não é senão um grande lago). Não é preciso ser muito inteligente para perceber que, se os fanatismos continuarem a extremar-se em ambos os campos, o conflito vai agudizar-se nos próximos anos, senão nas próximas décadas. É realmente um problema de vizinhança muito próxima, casas geminadas, em que nenhum dos vizinhos pode simplesmente mudar de casa para não ter de aturar o outro. Não. Ali, ou vivem juntos, ou está o caldo entornado, senão para as duas partes, pelo menos para uma das partes.

O problema resolver-se-á no dia em que certos atores do mundo árabe abandonarem o ódio ao Ocidente, nomeadamente o Irão, deixando de apoiar o terrorismo antissemita dos Hamas, Hezzbollahs e Jihads de toda a espécie. Por outro lado, Israel tem de aprofundar a sua democracia, defender-se contra os fanatismos e as ortodoxias internas, resistir à tentação ultrasecuritária em que pouco a pouco parece ir decaindo. Tem de ser um exemplo e um farol de esperança para todos, seja para judeus, árabes ou cristãos, uma pátria para todos os que nela quiserem realizar-se e viver em paz. Qualquer outra atitude significa ir atirando gerações e gerações de jovens para os braços fanáticos dessas jihads que só parecem idolatrar a morte.

Não creio que sem um processo sério, duro, doloroso, provavelmente longo, de reconciliação entre os dois povos, o problema se possa resolver. Um processo levado a cabo entre os setores mais moderados e esclarecidos de ambas as partes, sob forte supervisão internacional. Dois estados? Alguém ainda acredita que é uma solução viável? Um só estado de tipo federal? Será possível? Uns jamais recuarão, outros jamais admitirão “conviver com o inimigo”. Nas grandes nações, como Espanha, por exemplo, uma tremenda e dolorosa guerra civil cortou o país a meio como se fosse um facada que ainda hoje não deixou completamente de sangrar. Menos de 40 anos depois, as novas gerações souberam construir a unidade e a democracia. Na África do Sul, duas etnias, dois povos, encarniçaram-se numa quase guerra civil, entre muitos mortos e feridos de cada lado, para emergirem, não sem problemas, é certo, como uma mesma nação, a “nação do Arco-Íris”, ao cair o pano no XX. Talvez, quem sabe, as novas gerações de árabes, judeus e cristãos das décadas vindouras, cansados do medo e do sangue, e tendo em mente o seu futuro e o futuro dos seus filhos, para além de qualquer nacionalismo que não seja o da humanidade comum e da liberdade, possam vir a construir em conjunto uma unidade nova, uma pátria para todos.