Às vezes, não há nada como ir ao cinema para perceber a realidade. Em 1997, o filme “Wag the Dog”, com Dustin Hoffman e Robert de Niro, contava a forma como um Presidente americano criou uma guerra fictícia na Albânia para, com espetacular sucesso, desviar as atenções de um escândalo doméstico. A história podia ter sido esquecida e remetida para os arquivos da cinemateca, mas, em vez disso, transformou-se num símbolo de como o poder político tem a vontade e a capacidade de inventar cortinas de fumo e inimigos externos para distrair os eleitores. O filme começa com uma explicação do título, que se traduziria literalmente para português por “abana o cão”. Logo a abrir, temos esta frase: “Porque é que o cão abana a cauda? Porque o cão é mais esperto do que a cauda. Se a cauda fosse mais esperta, seria ela a abanar o cão”.

Na política portuguesa, nós somos o cão, os inimigos ocasionais do governo são a cauda e a superioridade da esperteza pertence inteira ao primeiro-ministro — que, alternadamente, consoante os seus interesses do momento, ordena ao cão que abane a cauda ou à cauda que abane o cão. O importante é que algo abane sempre, para que os eleitores não foquem a sua atenção nos falhanços do governo ou nas incompetências dos ministros, a começar pelo primeiro.

É um truque antigo, mas que resulta sempre. Em setembro de 2021, quando os portugueses se preparavam para votar nas eleições autárquicas, António Costa foi a Matosinhos apoiar a presidente de câmara Luísa Salgueiro e tirou da cartola a promoção da Galp a empresa inimiga da pátria. Levantando a voz, afirmou que “era difícil imaginar tanto disparate, tanta asneira, tanta insensibilidade, tanta irresponsabilidade, tanta falta de solidariedade como aquela de que a Galp deu provas” ao encerrar a refinaria de Matosinhos. E avisou, de forma ominosa: “Quem se porta assim tem de levar uma lição. Tem de levar uma lição para que esta lição seja exemplar”.

Em maio de 2022, com a pressão inflacionista a acelerar, chegou a vez das gasolineiras. Depois de anunciar uma redução do imposto sobre os produtos petrolíferos, o primeiro-ministro deixou uma ameaça no Twitter: “A ASAE vai estar atenta”. Julgando que a força do Estado não era suficiente, convocou a nação inteira para ações de vigilância ao comportamento daquelas empresas: “Todos devemos olhar com atenção para a fatura, de modo a garantir que o desconto é mesmo aplicado”. Depois, advertiu: o governo “não hesitará em tomar medidas se existir abuso das margens”.

Agora, temos os supermercados. Depois de mandar a ASAE percorrer as prateleiras, deu ordens ao ministro da Economia para se dirigir ao povo e garantir que o governo “será inflexível com situações anómalas”, garantindo a existência de “algumas práticas abusivas que merecem ser sancionadas”. O ministro proclamou que “o país está preocupado com o que se passa no setor alimentar, nomeadamente com a alta dos preços”, e insinuou quais seriam os culpados: ilibada a inflação e, naturalmente, o governo, sobravam as empresas detentoras de supermercados e hipermercados. De declaração em declaração, com o peito dos governantes progressivamente cheio de fúria e coragem, chegámos a um ponto em que se discute seriamente a possibilidade de os preços dos alimentos serem fixados pela burocracia do Estado para que, segundo a retórica oca da ministra da Agricultura e da Alimentação, “ninguém seja deixado para trás”.

Cláudia Azevedo, CEO da Sonae, tentou defender-se esta semana, protestando que “os culpados da inflação não são os supermercados” — mas é um esforço inútil. Quando António Costa manda o cão abanar a cauda, ou a cauda abanar o cão, não há muito que se possa fazer para contrariar esse movimento. Sempre que as coisas correm mal, a culpa pode ser do cão, da cauda ou de ambos — o importante é que a culpa nunca seja do governo. E, de facto, pelos vistos, nunca é.

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