Não sei quem primeiro se apercebeu. Talvez estivesse a guiar-se pelas horas da torre e chegado vergonhosamente tarde à reunião. Ou perdido a vez nas finanças, na entrevista de emprego, no cabeleireiro ou, ainda mais grave, no date amoroso. Sei que, terça-feira, na cidade do Porto, alguém sem relógio ou bateria ou que, simplesmente, tirou o nariz do telemóvel, do relógio de pulso dos antigos ou do “smartwatch”, olhou para a Torre dos Clérigos e disse, talvez floreando com termos do mais belo vernacular nortenho com que aqui apenas podemos sonhar: “Com os diabos. Aquele malfeitor daquele relógio está atrasado, meretriz que o deu à luz!” E lá há-de ter posto a arder as orelhas a quem de direito, que é como quem diz, a Irmandade dos Clérigos, entidade responsável pela gestão do monumento nacional, que logo confirmou: sim, senhor. Segunda-feira, um(a) senhor(a) turista não identificado/a mexeu num dos veios do relógio mais ou menos acessível à mão do leigo mais incauto ou atrevido, provocando-lhe um atraso de 40 minutos, e que já se havia encaminhado o assunto para reparação.
Isso. Não era a bela e nobre Invicta, cansada daquela coisa da “hora de Lisboa”, que decidira, enfim, adoptar um fuso horário próprio. Não era sequer que, de tanto alguns pedirem, o tempo tivesse mesmo começado a andar para trás, quem sabe se com um relógio de cuco a sair da portinhola de hora a hora, para dizer com aquela voz de velhinha de Salazar, “rapidamente e em força, rapidamente e em força”. Não. Havia mão humana por detrás daquele misterioso crime nas alturas.
O caso fez logo lembrar outro, não fez? O desse outro artista anónimo que, aqui há atrasado, subiu ao nicho da estátua de Dom Sebastião na estação do Rossio, em Lisboa, para tirar uma selfie com a dita e a destruiu, fazendo-a tombar inadvertidamente ao chão. Dois casos, dois atentados contra dois símbolos nacionais – Dom Sebastião e os Clérigos –, separados por 300 quilómetros e oito anos, o mesmo padrão, notaria Hercule Poirot: a estupidez.
Certo. Estou a ouvi-lo. Não sabemos se foram actos de puro e simples vandalismo ou meros acidentes (nem sequer sabemos quem cometeu o segundo, mas deve estar para breve. Não porque os Clérigos tenham alguma câmara de segurança lá em cima ou já teriam verificado as imagens, mas porque o Q.I. destas figuras geralmente dá-lhes para publicarem elas próprias as imagens que as incriminam). Todavia, seja um ou outro, são ambos estúpidos, não são? Em criança, costumavam ensinar-nos a não mexer no que não era nosso; hoje, tudo é aparentemente táctil: dos ecrãs do telemóvel e do tablet à Mona Lisa. E se valer uns likes e uns emojis nas redes sociais então, tudo é justificado.
Mas espere. Antes que desatemos a vituperar o turismo e a juventude e a querer fechar num cofre tudo o que só tem valor precisamente se estiver disponível para o usufruto de todos. E se isto fosse algo mais? Nem acto de negligência nem maldadezinha imberbe, mas intervenção artística? Gesto filosófico? Eu disse lá acima que se atentou contra dois símbolos nacionais, Dom Sebastião e os Clérigos? Rectifico: o sebastianismo e o atraso português. Ligados?
O que aconteceu segunda-feira na emblemática torre de Nicolau Nasoni foi, portanto, uma de duas coisas: ou avariaram um relógio de quase 300 anos ou fizeram um monumento ao atraso nacional. No TGV, no aeroporto da capital, na industrialização, na educação, na libertação da dependência do estado, na libertação da dependência dos fundos europeus, na confiança na iniciativa privada, na ferrovia, na definição de sectores estratégicos, na demagogia barata, na justiça, na saúde, na defesa, na habitação, no planeamento do território.
Volto ao princípio. Quem terá primeiro denunciado o atraso no relógio da Torre dos Clérigos? Quem sabe se, como em tantos policiais, não foi o próprio autor do crime? (Eu sei que não foi, mas deixem-me fantasiar.) Como quem diz: “Vejam! Estamos atrasados! Desde o século XVIII, quando Nasoni fez a torre! É preciso fazer alguma coisa!”
Isto – e mais uma série de flores de vernáculo nortenho. Quem me dera fossem só 40 minutos.