Não consigo parar de pensar no Major Tom da Space Oddity, aquele astronauta um bocado cyberpunk que o David Bowie um dia pôs a protestar, ele que era um homem arguto e de princípios tão firmes que não se coibiu de pôr o dito à deriva pelo espaço. Assim: Zás!! Uma declaração anti-sistema que me faz pensar, logo de seguida, na Trilogia de Marte de Kim Stanley Robinson. No primeiro volume (Red Mars) a tripulação deixa de responder aos comandos do Controlo Terrestre e entra em autogestão, para grande sobressalto das eminências pardas na Terra.
Uma coisa nada soviética, diga-se. Sugestivamente, a nobreza do Major Tom, o seu espírito crítico, individualista, e um pouco heroico — ou pelo menos pírrico — é tão sistema e tão pop como é o seu oposto. Na ficção científica Russa e Soviética era tudo mais coeso, mais idílico, mais utópico. Aliás, como ficava patente nos gloriosos pins dos cosmonautas da URSS que me lembro de colecionar quando ainda havia Comunistas na Festa do Avante. Nessa altura, sonhava em ser piloto porque era (mesmo nessa tenra idade) o sonho atingível.
Ser astronauta era coisa de grandes potências. Americanos. Russos. Cubanos, sei lá. Entretanto, as coisas mudaram. Agora já há emiratis, canadianos como o comandante Chris Hadfield — por sinal mais famoso por cantar a Space Oddity no espaço, de bigode — e até portugueses! Crioulos ainda não. Mas quase.
Faltam três dias para a minha chegada à Mars Desert Research Station (MDRS), um habitat análogo a Marte no Deserto do Utah. Não é bem Marte, mas é o que se arranja. À medida que fui contando a amigos e familiares que ia participar, dei-me conta de que muitos ficavam confundidos: “Mas vais a Marte…!?” Pelo que se depreende que andam entre nós indivíduos com expetativas exageradas sobre o alcance da ciência atual.
A tripulação de que sou Documentarista e Primeiro Oficial, por vias travessas, já se conhece bem, mas de longe. Estamos em treino desde o final de 2019, quando fomos selecionados para a MDRS. Já se ouviam rumores sobre a COVID-19 e meses depois seríamos mesmo obrigados a aceitar os factos. Solicitámos o adiamento da missão #238 para o longínquo mês de Janeiro de 2022, seguros de que sobejaria para normalizar a Matrix. Todavia, cá estamos, à beira do terceiro ano de pandemia, fazendo escolhas questionáveis. Por exemplo, desconfinando num habitáculo confinadíssimo, apertado, cheio de regras, e cheio de estranhos, e com uma gestão quase soviética do dia-a-dia.
Há duas semanas, parecia possível que se voltasse a cancelar. Há uma semana decidimos que avançaríamos, a menos que a fronteira voltasse a encerrar. Não encerrou. Há dois dias, os primeiros dois membros da tripulação encontraram-se por total acaso no Aeroporto Internacional de Dallas-Forth Worth. O mundo é pequeno de novo.
Voei de Toronto, onde idolatramos o Chris Hadfield, para Denver, onde se fumam umas coisas que estão proibidas aos astronautas (e astronautas análogos). No aeroporto de Denver deparo-me logo com um poster misteriosíssimo sobre viagens a Marte. Nem de propósito! Mas não pude parar para indagar: fiz-me à estrada com horas contadas para atravessar as Montanhas Rochosas antes da borrasca que promete fechar a autoestrada até ao Ano Novo. Uma travessia delicada e mesmo a tempo: os passos montanhosos já agrestes, mordidos pela neve e pelo vento, mas protegidos pelos inúmeros crucifixos de néon que brindam a paisagem noturna do Colorado.
Cheguei a Grand Junction, Colorado, a tempo de jantar com a tripulação.
Amanhã começamos o treino prático, finalmente. Mas não antes de irmos fazer os nossos primeiros testes PCR (obrigatórios), e fazer umas compras. No meu caso, abastecimentos para a minha katxupa: milho e mandioca.
Mas deixamos isso para outro dia.