Mars Desert Research Station, Hanksville, Utah (EUA) — Sendo franco, o dia de ontem não correu como devia. O sol brilhou o dia inteiro, iluminando as fraldas das Montanhas Rochosas, à distância. Pelo menos essa parte correu bem, até porque o que estava previsto era outro dia de neve. Quanto a horários, no entanto, foi um dia de fazer puxar os cabelos. A Comandante Robinson e eu já tínhamos ajustado a nossa agenda do dia para acomodar a tripulação de saída e tentar agilizar o processo de transição. Não resultou, e tudo o que estava planeado se
atrasou. Jantámos tarde, dormimos tarde, dormimos pouco…
E talvez por estarmos cansados e rezingões nos tenha chocado, esta manhã, ver a quantidade de bagagem que tínhamos que encaixar num veículo surpreendentemente pequeno para um grupo de seis cidadãos astronautas. Quase não cabia, mas coube. Há pouco Lego que me desafie. No entanto, depois deste esforço hercúleo, ainda me tocou a mim viajar entalado no banco de trás. Conveniente, para bater uma soneca, e ver passar Bip Bips.
De Grand Junction (Colorado) a Hanksville (Utah) são umas três horas de carro, mas as mudanças no clima não podiam ser mais drásticas. Da neve omnipresente passamos, quase sem transição, a um deserto praticamente copiado daquele cartoon do coiote e do papa léguas. Bip Bip!!! Em Hanksville — uma aldeiazinha praticamente abandonada numa encruzilhada sem interesse, e que faz lembrar o filme “The Hills Have Eyes” — fazemo-nos amigos de um cavalo cor-de-prata e de um cão pastor amistoso enquanto esperamos pelo nosso guia.
Passamos o resto do dia a desfazer as muitas malas, a preparar e a testar equipamento, e a tentar entender os muitos (e complexos) sistemas da estação. O habitáculo é surpreendentemente espaçoso, mas simultaneamente apertado para seis. Prevejo passar as minhas manhãs a digitar na redoma científica, um edifício amplo e otimista.
O campus precisa de reparos exteriores urgentes numa série de sítios. O nosso engenheiro Simon Werner está nas suas sete quintas, portanto. Pergunta por filtros disto, lâmpadas daquilo, vai fazendo uma lista de proto-problemas para resolver amanhã, e ainda mal chegámos. Só não está particularmente interessado na tarefa de esvaziar o tanque sanitário… precisamente a tarefa na qual todos lhe citam o manual: é responsabilidade exclusiva do Engenheiro. Update: são 2h52 da madrugada (9h52 de Lisboa), e acabo de passar uma hora e meia a testar
detetores de monóxido de carbono com o Eng. Werner. É sempre assim: na primeira noite, falha sempre tudo. Lei de Murphy. Sabemos que é um erro nos sistemas, mas temos que verificar, claro. Aliás, enquanto não estiver tudo bem, ninguém dorme. E por ninguém, quero dizer eu e ele – dos outros 4, ninguém acordou.
Com tanta preguiça, não admira que a Alice se tenha mudado para cá. Não vos falei na Alice? Um ratinho de campo marciano, que se passeou por todos os quartos no meio do jantar. Apanhámo-la com manteiga de amendoim e está agora na sala de descompressão, em standby para ser libertada amanhã… longe daqui.
O habitat esteve completamente fechado durante praticamente um ano, portanto nada disto surpreende. Quando a pandemia começou, a diretora teve que sair de emergência, deixando-o ao seu próprio destino. Podia ter sido pior. Podia ter havido vandalismo. Em abril de 2021 regressou a primeira missão destes novos tempos, e em setembro outra, e mais uma estas últimas duas semanas.
A nossa #238 é a quarta desde que começou a COVID-19. Testados e vacinados até ao nariz.
E amanhã é o dia de verdade: um dia pleno de treino de comunicações, treino com fatos de EVAs, e testes dos nosso quatro rovers (Spirit, Opportunity Perseverance, e Curiosity)… seguido de testes de conhecimento. Se passarmos, entramos em simulação na manhã seguinte, mas teremos a tarde para acertar agulhas, alinhar os projectos de investigação, e aproveitar para ver as estrelas cadentes outra vez. Diz-se que se pede um desejo.