As propostas enunciadas pela Alemanha e pela França nas vésperas do Conselho Europeu de Maio tiveram em vista um reencetar das negociação de paz entre a Rússia e a Ucrânia. Acontece, que o corpo das propostas Franco-Alemães pode vir a repetir alguns dos erros cometidos durante a tentativa de apaziguamento que decorreu no período anterior à invasão. Refiro-me à circunstância de em ambas as situações existir uma prevalência atribuída a escolas de análise que desconsideram a influência da cultura e da ideologia de cada agente internacional aquando do seu processo de decisão política.
As relações internacionais desenvolvem-se num contexto de Anarquia decorrente da inexistência de um órgão de poder supraestadual cujos poderes de soberania se demonstrassem habilitados a garantir a segurança e a ordem. A sociedade civil existente na maioria dos estados-nação vê-se assim forçada a conviver com uma esfera internacional dominada, em larga medida, por um estado de guerra no qual convergem agentes estaduais e não-estaduais. Ora, a cultura, a ideologia – e até a personalidade de cada agente individual – afiguram-se como os principais indicadores que devem ser incorporados numa análise teórica das várias relações supranacionais que são encetadas em circunstâncias de Anarquia. A definição de conceitos indeterminados, tais como “segurança” ou “equilíbrio de poderes”, encontra-se dependente do quadro de valores de cada agente e do modo como a personalidade de cada um destes intervenientes afeta a exteriorização do seu ideário. Com efeito, um mundo que mantivesse a Anarquia das relações internacionais, mas que fosse constituído inteiramente por políticos semelhantes a um Ghandi seria muito diferente de um mundo constituído inteiramente por políticos semelhantes a um Putin. Estas são as principais teses da escola de pensamento Construtivista cujos proponentes referem por várias vezes a máxima do teórico político Alexander Wendt: A Anarquia é o que os Estados fizerem dela.
Os efeitos conjuntos do aventureirismo militar e da irracionalidade económica, subjacentes à guerra na Ucrânia afiguram-se como uma experiência demonstrativa da importância que deve ser atribuída à cultura e à ideologia das várias personalidades internacionais. Vejamos: a invasão implicou o fim dos projectos relativos ao gasoduto Nord StreamII, cuja negociação já levava décadas; a posição de apaziguamento que os governos Alemães e Franceses procuraram seguir na sua relação com a Rússia foi prejudicada; gerou-se um maior isolamento da Federação Russa face às economias com os consumidores mais prósperos de todo o mercado internacional; os países nórdicos viram-se justificados numa adesão à NATO que expandiu largamente a fronteira terrestre que esta aliança militar partilha com a Rússia; e, por último, os propósitos de fazer capitular a Ucrânia de forma rápida não foram atingidos. Não obstante todos estes factos prejudiciais para a posição estratégica da Rússia, a invasão prosseguiu e as negociações de paz faliram. Ora, nem os apelos às virtudes de uma maior integração económica e institucional – sugeridos pela escola idealista e liberal – nem as invocações dos equilíbrios de poder – postulados na análise da escola realista – apresentam um poder explicativo destas aparentes anomalias. As ações da Rússia só se tornam compreensíveis se forem vistas como estando integradas num projecto expansionista decorrente, em alguns aspetos, de doutrinas com séculos de história. Sobre este ponto importa fazer referência ao livro Na Cabeça de Putin, redigido pelo filósofo Francês Michel Eltchaninoff e recentemente editado na sua versão portuguesa.
A desconsideração pelo papel desempenhado pela cultura de cada agente internacional é aquilo que no período posterior à invasão motivou a surpresa de quem interpretava Putin como um líder estritamente calculista cujo processo de decisão estaria isolado de euforias e irracionalidades ideológicas. À revelia das lições extraídas da prática internacional, a tentativa de organizar negociações de paz parece estar a cometer erros de análise semelhantes. Constata-se, por isso, que os impactos da guerra da Ucrânia podem levar à erosão das escolas de pensamento que procuraram enunciar mecanismos para a conservação da paz a nível internacional. O construtivismo demonstra a importância dos fatores culturais e ideológicos, mas não apresenta um mecanismo para o restabelecer da paz face a um agente internacional que pretenda agir de um modo belicista em consequência de opções ideológicas obstinadas. A longo prazo a paz só seria possível se estivesse enquadrada em critérios de pureza doutrinária, que muito provavelmente só o ideólogo entenderia. Toda esta mudança de paradigma tem a agravante de ocorrer numa esfera internacional progressivamente mais instável.