Confesso que, por hábito, não utilizo o Refeitório nem o Bar da minha escola. Sei, por outros, que a comida é excelente. Também sei que a minha escola já foi distinguida com vários prémios de alimentação saudável e que é a única em Lisboa em que os almoços são confecionados internamente, por funcionárias com dedicação notável à confeção aprimorada das refeições. Fico muito satisfeito, diria quase orgulhoso, por saber que lhe são atribuídas tais distinções.
Acabei de deixar um elogio à qualidade dos produtos servidos, mas quero registar também a desadequada mentalidade que superintende o atendimento de alunos e professores, que radica numa ideologia que devia estar ultrapassada. Há alguns dias, fiquei pasmado com um relato de uma situação ocorrida no Bar. A professora Luísa estava muito aborrecida a queixar-se de que, quando estava na fila para ser atendida no Bar, por norma muito extensa, deu conta de vários alunos a “meter conversa” com colegas que estavam mais à frente, para se encaixarem sub-repticiamente, conseguindo passar à frente dos mais cumpridores. Qualquer pessoa que frequente uma escola do ensino básico e secundário (ou mesmo do superior) reconhece com facilidade a situação descrita. A professora Luísa reclamou, os alunos fizeram-se desentendidos, o pequeno intervalo passou e a professora Luísa teve de seguir para a aula seguinte sem tomar o seu cafezinho.
Veio-me logo à memória um poema batido, do meu querido António Gedeão, que me permito adaptar.
Luísa sobe/ sobe a escada/ sobe e não pode/ que vai cansada. Sobe, Luísa/ Luísa, sobe/ sobe que sobe/ sobe a escada/ vai dar uma aula/ desencantada.
Saiu de casa/ de madrugada/ regressa a casa/ é já noite fechada. Na mão tão fina/ de pele lustrada/ leva a mala/ desengonçada. Anda, Luísa/ Luísa, sobe/ sobe que sobe/ sobe a escada.
Luísa não é nova/ mas é desenxovalhada/ ferve-lhe o sangue/ de afogueada/ salta os degraus/ na caminhada. Anda, Luísa/ Luísa, sobe/ sobe que sobe/ sobe a escada/ que a aula é no terceiro piso/ à hora marcada. Passam alunos/ aos encontrões/ fixados nos ecrãs/ nem nela reparam/ nem dão por nada.
Chegou a casa/ muito cansada/ não disse nada. Tratou da sopa/ numa golada/ lavou a loiça/ fez um PowerPoint/ escreveu sumários/ não viu trabalhos/ deitou-se à pressa/ desinteressada/ adormeceu sem dar por nada. Sonhou que sobe/ sobe que sobe/ sobe a escada.
Na manhã fria/ enfeitiçada/ salta da cama/ e faz-se à estrada.
Chega à escola/ desaustinada/ tem muitas turmas/ muda de sala a cada passada/
salta do básico ao secundário/ manda calar/ não dão por nada/ o toque chega/ à hora marcada.
É a última a sair/ deixa a sala arrumada/ corre ao Bar/ na hora aprazada/ não é atendida/ volta à toada/ Luísa arqueja/ desesperada.
Anda, Luísa/ Luísa, sobe/ sobe que sobe/ sobe a escada/ faz de conta que recuperas/ a carreira congelada/ se fores do último escalão/ não recuperas nada.
Como entender que uma professora, que, terminando a aula, tem a obrigação de ser a última a sair da sala, tenha também de se ir colocar na fila do Bar, onde estão dezenas ou centenas de alunos, que assim que as aulas terminam voam para lá. Ou alguém admite que, ao toque, a professora abandone a sala de aula, saindo antes dos seus alunos?
O paradigma da igualdade é demasiado retrógrado para ser aplicado nestas circunstâncias. Nos dez minutos de intervalo, a professora tem de desligar a sessão no computador e esperar que todos os alunos saiam da sala, havendo sempre alguns que se demoram por lá, tem de verificar a arrumação da sala e fechar a porta à chave, tem de descer alguns pisos, quase sem tempo para, estando aflita, ir verter-águas, porque tem de estar à hora marcada na próxima aula, que fica numa sala na outra ponta da escola.
Como é que caímos na esparrela de aceitar que não haja uma fila reservada a professores no Bar e no Refeitório? Apenas pela sujeição cega à ditadura da igualdade, quando jamais somos iguais, porque o estatuto e o papel do professor em nada se assemelha ao dos alunos.
A ignomínia de tratar os professores em pé de igualdade com os alunos tem ajudado, e muito, a fazer desmoronar o ambiente escolar, o ensino, a aprendizagem e, de sobremaneira, a procura pela profissão docente.
Há falta de professores. É notícia, mas não é novidade. Vai continuar a haver falta de professores, tanto pela escassa procura, como pela enorme vontade de muitos quererem sair para outras lides. Não duvido que a falta de professores vai aumentar.
No ano passado, o professor Luís, acabado de se profissionalizar como docente, esteve um mês na escola. Desistiu. Não conseguiu. Não foi capaz de aguentar a indisciplina, a falta de respeito. Este ano, o professor João, depois de três semanas de aulas, meteu baixa, está desaparecido, traumatizado pelo combate que teve de travar.
A professora Maria teve de fazer uma participação disciplinar sobre todos os alunos da turma, pois estavam constantemente a imitar o ladrar de cães e o miar de gatos, sem qualquer respeito pela professora nem qualquer pudor em desobedecer às suas ordens.
O professor de Filosofia entregou um teste com avaliação negativa a uma aluna, que, ao ver a nota, lhe respondeu na cara: «What a fuck!». O professor registou a respetiva falta disciplinar, mas teve de se ver confrontado com a mentira da aluna e o desplante da mãe a contestar a falta disciplinar, porque o professor terá ouvido mal, pois «a minha filha seria incapaz de dizer uma coisa dessas».
Como é que nos deixámos arrastar até ao ponto em que a palavra do professor possa ter uma valia semelhante à palavra dos alunos?
Os diretores de turma estão diariamente a receber encarregados de educação que reclamam porque o seu educando foi admoestado por estar «apenas a conversar com um colega». Constantemente justificam faltas por «doença» (devidamente comprovada pelos pais), que acomete os educandos sobretudo ao primeiro tempo da manhã, quando não das 10h às 11h, na hora da aula de Educação Física ou de Português.
«Ó professora, meta baixa!» – dizia, noutro dia, um aluno atrevido.
Quantos professores estão de baixa médica? Demasiados.
Quantos professores estão ao serviço, mas sem componente letiva, porque a junta médica a que são sujeitos reconhece que estão esgotados, que não conseguem aguentar os alunos? São em número excessivo.
Alguém “com os alqueires bem medidos” poderá aceitar este estado da educação?
Relativamente à Matemática, estamos a descer, estamos em mau caminho. No passado dia 4/12 foram publicados os resultados do TIMSS 2023. Esta comparação internacional é muito relevante, com indicadores que deviam preocupar todos os que se dedicam à educação dos jovens portugueses.
No TIMSS de 2015, os nossos alunos atingiram o nível mais elevado de sempre, impulsionados por um governo que colocou mais exigência no ensino, que valorizou as provas de avaliação e organizou programas e metas. Sempre que há uma prova de avaliação, a maioria dos alunos estuda mais. Se estuda mais, aprende mais. Alguém duvida? Na Matemática, estruturou-se o ensino, com sequências de aprendizagem racionalizadas, lógicas, que permitiam ir subindo, degrau a degrau, sem magia ou artifícios folclóricos.
Depois de 2015, com geringonças incríveis, foi um fartote de bota-abaixo na organização estruturada do ensino. Já não é preciso programas, bastam as aprendizagens mínimas essenciais. É necessário eliminar as provas de avaliação, o que é preciso é descontrair, relaxar, quando muito passear os livros pela escola, o que eles precisam é de se distrair.
Quantos professores de Matemática estão virados do avesso com as novas aprendizagens essenciais do secundário, que em boa parte trocaram a Matemática por Contabilidade? Garanto-vos que são muitos.
Os países/economias melhor classificados no TIMSS 2023 (Singapura, Taipé, Coreia, Japão, Hong-Kong) são sociedades exigentes que valorizam imenso o esforço e a disciplina, de modo radicalmente diferente dos últimos lugares da tabela (Brasil, Marrocos). Portugal ficou na segunda metade da tabela. Quem é que se orgulha? Afinal, Senhor Presidente da República, não somos sempre os melhores do mundo.
Perante o desaire mais que esperado e posto agora a nu pelos resultados do TIMSS 2023, onde é que se meteram os abolidores das provas finais, os proponentes da falta de rigor, da falta de exigência, do desmantelamento dos programas e metas curriculares, os cuidadores do desgoverno do anterior Ministério da Educação? Estão contentes pelo desaire ou camuflados pela vergonha? Não se ouvem, andam caladinhos.
Na minha adolescência fui claramente influenciado pelo matemático e filósofo Bertrand Russell, e deixei-me fascinar pelos muitos dos seus escritos, entre os quais «Educação e vida perfeita». Porém, os anos passaram, a experiência acumulou, o mundo mudou, e eu sei que não tenho, nem acredito que alguém tenha, as soluções ideais para a educação dos jovens. Falei-vos de casos que não deviam ocorrer, mas que acontecem quotidianamente, aos milhares, embora a par de milhões de outras situações extremamente positivas nas nossas escolas.
Para não abandonar a esperança, deixo aqui tão-somente três pistas, sem considerações de ordem, para melhorar o estado da arte de educar:
Valorizar os programas e a componente de avaliação que é possível obter em testes escritos, cuja classificação é mais fiável e objetiva.
Eliminar o preconceito da igualdade entre professores e alunos, evoluindo para escolas e salas de aula onde a posição do professor se coloca distintamente acima da posição dos alunos.
Limitar bastante a interferência dos encarregados de educação no processo educativo.