Saí de casa de calções. Na rua, esperava-me a minha amiga no seu carro. Capota aberta, toalhas e fatos de banho atirados para o banco de trás, livros para encher a tarde, playlists no telemóvel. É Verão. Decidimos sair de Lisboa num passeio sem destino definido. Ainda na cidade, num semáforo, um enorme camião pára ao nosso lado. O motorista, alguns metros acima de nós, está de janela aberta. Durante uns segundos ouvimos a sua música e ele a nossa. Olhamo-nos. O sinal muda e nós arrancamos. Sem história.

Estamos em Portugal, em 2021: duas mulheres, num carro de capota aberta, de calções e camisolas de alças, com os cabelos soltos, a ouvir música e a rir, não são notícia. Já foram. Lembro-me das férias na Beira, nos anos oitenta, em que uma mulher entrar num café era assunto para uma semana, com direito a comentário na novena das beatas. Mas era assunto debatido em surdina. Quem assim pecava não era insultada, espancada ou apedrejada no pelourinho. Nem era violada em cima do balcão.

Benefícios de um Estado laico, com direitos conquistados e implantados na Constituição.  Benefícios de direitos adquiridos e inalienáveis. Benefícios europeus.

Entre Lisboa e Cabul há uma distância de quase 9.000 quilómetros. Entre o Estado laico e a sharia há uma distância de séculos. Porém nada do que temos, de direitos ou liberdades, mesmo quando bem implantados, é permanente e, de facto, inalienável. A cerca de 3.000 quilómetros de distância, em Varsóvia ou em Budapeste, a direita ultraconservadora, aliada à Igreja, está a fazer uma alienação, não apenas de direitos humanos, ao decretar, por exemplo, cidades livres de LGBT, como antes houve cidades livres de judeus, mas também dos direitos das mulheres, ao proibir o aborto, mesmo em casos de mal formação do feto, ou ao pretender abandonar a Convenção de Istambul, tratado contra a violência sobre as mulheres, a pretexto de pôr em causa a família tradicional. Que é, ao que parece e em suma, o marido poder bater na mulher e o reforço do patriarcado.

A Polónia e a Hungria fazem parte da União Europeia. A distância entre a direita ultraconservadora e a sharia é curta. Tanto a Hungria como a Polónia, e por efeito de contaminação, a Roménia, a Eslováquia, a Latvia, se afirmam descontentes com valores impostos pela UE que consideram demasiado ocidentais. Da mesma ocidentalidade se queixam os extremistas islâmicos.

Cabe ao Ocidente, e aos seus Estados de Direito, garantirem a segurança das mulheres e das meninas de Cabul.

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