Num grupo fechado de 19 mil médicos numa rede social, o relato de um colega referia ter encontrado um recibo do seu vencimento em 2005. Constatou que o seu ordenado líquido era superior ao atual, apesar de ter atingido em 2009 a última categoria da carreira médica. Terminava interrogando: “depois admiram-se que o pessoal saia do SNS ou emigre…

Muitos médicos com muitos anos de experiência reveem-se neste desabafo. São casos generalizados a todas as especialidades e a muitas instituições do SNS. É este o padrão que os mais novos, internos e especialistas, observam e que pode ajudar a perceber porque é que continuamos a não aproveitar a maioria dos bons especialistas que formamos e a entender as causas e as consequências deste grave problema do SNS.

Os problemas são inúmeros, desde a estagnação remuneratória no SNS, desmotivadora só por si, ao bloqueio da progressão na carreira médica – os raros concursos arrastam-se anos, às vezes em infindáveis processos nos tribunais que acabam com a sua anulação.

O SNS tem perdido assim os seus especialistas mais diferenciados. Só na última década saíram mais de 2 mil assistentes graduados seniores, que na sua grande maioria não foram substituídos, porque há um modelo de contratação que é uma trapalhada – subjugado aos interesses do Ministério das Finanças –, sem condições de reposição célere e satisfatória.

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As instituições do SNS deixaram também de ter meios para formar, inovar e investigar. Investigar passou de acessório a dispensável, formar tornou-se uma obrigação, novas técnicas são consideradas “gastos a justificar” e, assim sendo, proteladas.

Os médicos não têm tempo para aprender e ensinar, nem condições para fazer investigação clínica, os hospitais e centros de saúde tornaram-se meras repartições públicas empenhadas em produzir números, despersonalizadas e desinteressantes.

A cereja amarga no topo do bolo azedo é a contratação de empresas prestadoras de serviços e tarefeiros para as urgências, aos quais não se exige “amor à camisola” e se paga à peça ou à hora valores 5 a 7 vezes mais do que aos especialistas que ainda permanecem no SNS.

Todos estes problemas estão bem identificados. As soluções são exequíveis, mas as decisões tardam. Sempre com justificações, desculpas e álibis. A troika, o défice, a pandemia, tudo tem servido para adiar uma reforma necessária. E cada atraso agrava as dificuldades, tornando mais difícil a aplicação efetiva das decisões.

Os serviços e equipas médicas não têm autonomia para decidir, não têm poder para fazer o que sabem fazer melhor: tratar os doentes. Essa autonomia e esse poder fizeram a diferença no auge do combate à pandemia. Existiu por pouco tempo e não se aplica nas restantes situações. Infelizmente…

As decisões para ultrapassar este impasse estão nas mãos da Ministra da Saúde. Existe vontade, capacidade e coragem para requalificar a carreira médica?

Está a Ministra disposta a abrir os concursos da carreira médica estagnados há 15 anos? A atribuir remunerações adequadas à responsabilidade e à qualificação dos médicos que evitem o êxodo do SNS? A criar outros graus, a reconhecer as subespecializações e as competências e a retribuir a progressão profissional? A investir em tempo, dinheiro, atenção e reconhecimento efectivo dos médicos em prol da qualidade da assistência que o SNS propicia aos portugueses?

Há medidas simples, de compreensão e aplicação imediata, que fariam toda a diferença e poderiam reverter o estado calamitoso que se vive.

Concursos regulares (trimestrais/semestrais) para todos os graus da Carreira; prazo máximo (3 meses) para iniciar e terminar estes concursos, com efeitos retroativos nas remunerações caso os médicos que preencham as vagas já estejam nos quadros do SNS anteriormente.

Mas também atribuir autonomia às direções de serviço e direções clínicas, de forma a poderem abrir contratações imediatas para todos os lugares que vagarem nos serviços.

Porém, precisamos igualmente de um reforço orçamental efetivo para concretizar uma nova carreira médica com os Sindicatos e a Ordem, com mais patamares, que privilegie a diferenciação e as novas subespecializações que acompanham o desenvolvimento da Medicina.

É também fundamental começar a pagar as horas por igual a tarefeiros e a médicos do quadro. E reequipar e requalificar tecnologicamente os serviços do SNS, permitindo a diferenciação e a recuperação do atraso que se instalou nestes 15 anos.

E uma derradeira sugestão: reservem-se tempos nos horários de trabalho para formar e investigar, com aplicação em todas as fases da carreira médica.

Ainda é possível inverter as causas que têm levado ao abandono do SNS. Estamos à espera de quê?