Um dos maiores desafios do SNS é a capacidade que este tem para reter os médicos. Ao longo dos últimos tempos temos visto demasiados exemplos do que não fazer. Por exemplo, o caso do médico cardiologista no Médio-Tejo que foi demitido por supostamente não ser capaz de fazer escalas de urgência de cardiologia de apoio à urgência central, quando nem deve haver este tipo de escalas quando o hospital não realiza intervenções deste tipo, é paradigmático. Ou então os processos disciplinares a todos os casos de obstetrícia que foram notícia na comunicação social. Há seis processos a decorrer neste momento, e se já temos poucos obstetras no SNS, este é um caminho para termos ainda menos médicos obstetras no Serviço Nacional de Saúde.

Isto são exemplos de como não fixar médicos no SNS ou que têm contribuído para a taxa de fixação que temos atualmente. Mas o que deve ser feito para fixar os médicos no SNS? Não, não é uma pergunta de um milhão de euros. Basta analisar a realidade e atuar no que está mal.

Um dos principais desafios, e aquele que possivelmente atrai mais médicos para o SNS, a diferenciação. Neste momento o SNS já não oferece o mesmo tipo de diferenciação que ofereceu há 25 ou 30 anos. Foi sempre a diferenciação progressiva e o desenvolvimento profissional contínuo que fez a diferença nos médicos. Foi a diferenciação que permitiu que os médicos se sujeitassem a piores condições de trabalho, a piores remunerações, e que, mesmo com a oferta na medicina privada, fazia a diferença no momento de decidirem onde iam exercer a sua profissão. Sabemos que há novas técnicas e queremos acompanhar essa evolução em prol dos doentes. Neste momento é fundamental voltarmos a diferenciar, ter internatos com qualidade e passar a ter fellowships, uma proposta que já apresentei na Ordem dos Médicos. Temos de apostar na diferenciação e fazer com que a formação não acabe aos 31 anos.

Depois, a remuneração, e por isso temos de passar das moedas para as notas. Só agora começou a haver esta consciência na generalidade da sociedade portuguesa, mas os políticos já a tinham. Sem melhorar condignamente a remuneração de base e as tabelas remuneratórias, não falo das horas extraordinárias pois isso é uma não questão, nada podemos fazer.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Estas duas medidas, melhor remuneração e aposta na diferenciação, vão culminar na carreira médica. A carreira médica foi estruturante para a nossa medicina há 40 anos. Hoje foi perdendo tudo o que ligava os médicos à sua profissão. Na minha opinião já não há carreira médica. Ter uma carreira como a que temos hoje até poderia funcionar, mas os concursos não existem, as vagas não abrem a tempo, a progressão pura e simplesmente não existe. Nós não temos carreira médica em Portugal. Temos de criar uma nova carreira médica, uma carreira capaz e flexível, que tenha a capacidade de trazer e fixar os médicos no SNS. Não faz sentido que um médico altamente diferenciado e especializado, por exemplo os neonatalogistas que salvam crianças com 600 gramas, acabadas de nascer, e que são a diferença entre a vida e a morte, tenham a mesma remuneração de um pediatra que optou pelas consultas após a sua especialização. A carreira tem de assentar em tabelas muito claras, mais do que as que existem hoje. A carreira médica tem de ser reconstruída, reformulada, implementada e depois respeitada.

Depois, não nos podemos esquecer que a sociedade mudou, mudou muito nos últimos anos. As pessoas têm expectativas de vida diferentes do que acontecia há 30 anos. Os médicos querem, os médicos precisam de flexibilidade. Os médicos querem e precisam de tempo para fazer um doutoramento, para fazer apoio social, para ir trabalhar, durante alguns meses, para o estrangeiro, para um país com maiores necessidades médicas. A possibilidade de existirem horários integrados em equipas, mais flexíveis, adaptados a cada pessoa, género, a cada necessidade, são necessários para fixar os médicos no SNS.

Também tão importante quanto as medidas já aqui explicadas, devolver a autonomia, a responsabilidade e aumentar a liderança clínica. Neste momento, por muito que queiramos fazer algumas coisas, não conseguimos fazer. Muitas vezes são pedidas responsabilidades aos médicos por algo que não está sob a sua alçada ou capacidade de decisão e resposta. Sem autonomia, sem responsabilidade, próprias da nossa profissão, não conseguimos liderar os processos do ponto de vista clínico. Esta autonomia é preciso ser incorporada e respeitada, de modo que se evitem os exemplos de que dei conta no início deste artigo.

Finalmente a inovação. O SNS tem vindo a perder a sua vertente inovadora. Existem ainda muito bons centros que a fazem e implementam, que são exemplos para todos nós. Mas cada vez são menos, e há medida que os outros serviços vão falhando, o castelo de cartas vai caindo e tudo começa a dar problemas. Quando começar a ser preciso que os bons cirurgiões de um centro de transplantes passem a dar consultas e a fazer menos transplantes, os prejudicados são os portugueses. A capacidade de inovação no SNS está a ser destruída e a ser transferida para o setor privado, por que o sabe fazer, tem autonomia, liderança e responsabilidade, ou para o estrangeiro. E por isso temos de incorporar a inovação que foi desparecendo ao longo dos últimos 15 anos. Temos que exigir que haja inovação, sem isso os nossos jovens médicos, aqueles que querem ajudar não vão estar no SNS para o fazer.

Estas são algumas condições necessárias, mas não apenas estas, para o reconhecimento social do médico. Repor a dignidade e o prestígio da carreira médica deve ser o propósito da cúpula política responsável pelo setor da saúde em Portugal.