1 Decorreu há duas semanas (26-28 de Junho), no clássico Hotel Palácio do Estoril (o hotel dos aliados anglo-americanos durante a II Guerra) a 31ª edição do Estoril Political Forum. O tema global era duplo: “Rebuilding Democratic Consensus”, em primeiro lugar, e, logo a seguir, “Celebrating the 650th Anniversary of the Anglo-Portuguese Alliance”.
Tenho a fraqueza de acreditar que a tradição pluralista destes encontros, bem como a profundamente pluralista mensagem subjacente aos dois títulos desta 31ª edição, foram respeitadas e reforçadas.
2 Um exemplo simpático poderá ser ilustrado pela presença de Timothy Garton Ash, um empenhado crítico do “Brexit”, e de (Lord) Charles Moore, defensor do “Brexit”. Ambos defenderam enfaticamente a aliança euro-atlântica em defesa da Ucrânia, barbaramente invadida pela ditadura czarista-comunista do sr. Putin.
Além disso, estiveram na mesma mesa de jantar logo na primeira noite, no George Washington Memorial Dinner, sob a presidência da Embaixadora americana em Lisboa, HE Randi Charno Levine. E conversaram cordialmente, sem o menor sinal de animosidade.
Lord Moore estava particularmente enfático nos temas clássicos da equitação e da jardinagem. Tim Garton Ash muito amavelmente recordava os jogos de ténis em Oxford entre ele e seu filho Alec, por um lado, e minha filha Diana e eu próprio, por outro. Tim cavalheirescamente não disse, mas eu tenho o gosto e dever de recordar que minha filha e eu registávamos com apreço o espírito cavalheiresco e “unassuming” com que eles nos cumprimentavam quando venciam as partidas de ténis.
3 Devo agora observar que estes seriam certamente exemplos prediletos para as (a meu ver patéticas e primitivas) esquerda e direita iliberais que só sabem falar da luta de classes do chamado “povo” contra as chamadas “elites”.
Dirão os revolucionários igualitários da direita e da esquerda radicais nas chamadas “redes sociais” (que, por conselho de Karl Popper, na altura apenas sobre a televisão, eu ostensivamente não frequento) que Tim Garton Ash e Charles Moore estudaram ambos em escolas de elite: Tim estudou e é professor em Oxford (bem como, ainda por cima, em Stanford) e Charles estudou em Eton e Cambridge.
Ambos escreveram na revista conservadora-liberal The Spectator, de que Charles Moore foi diretor, tendo sido também diretor do Telegraph e do Sunday Telegraph (ambos jornais conservadores). Vale a pena recordar, simultaneamente, que Tim Garton Ash escreve agora no Guardian, claramente associado à (para usar a terminologia continental) esquerda democrática, bem como por vezes no Financial Times.
4 Sobre esta comum “elitista” educação britânica, vale talvez a pena recordar o que disse Winston Churchill:
“Como poderemos nós, educados como fomos num clima de liberdade, tolerar sermos amordaçados e silenciados; ter espiões, bisbilhoteiros e delatores a cada esquina; deixar que até as nossas conversas privadas sejam escutadas e usadas contra nós pela polícia secreta e todos os seus agentes e sequazes. […] Pois eu afirmo que devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para não termos de nos submeter a tal opressão”.
Vale a pena recordar que os populistas radicais da esquerda e da direita atacam hoje Winston Churchill – uns porque ele não era politicamente correto, outros porque ele aceitou uma aliança com a URSS contra o nazismo (esquecendo-se de que foi Churchill quem, em 1946, lançou o termo “Cortina de Ferro” e apelou à aliança euro-atlântica na guerra fria contra o comunismo).
Mas a animosidade da esquerda e da direita revolucionárias contra Churchill é compreensível. Ele na verdade foi da direita e da esquerda demo-liberais: foi deputado conservador de 1900 a 1904, depois liberal até 1924, de novo conservador de 1924 até ao fim da sua carreira parlamentar, em 1964 (morreu em 1965). Para os primitivos revolucionários da esquerda e da direita iliberais, isto é certamente incompreensível e inaceitável.
Acresce que Churchill venceu como Primeiro-Ministro a guerra em Maio de 1945, e perdeu em Junho as eleições parlamentares para o Trabalhista Clement Attlee, que tinha sido seu vice-primeiro-ministro durante a guerra. Sem pestanejar, Churchill assumiu a derrota e passou tranquilamente no Parlamento para o lugar de líder da Oposição. Não creio que valha a pena recordar este comportamento cavalheiresco aos carroceiros (com devido respeito aos honrosos profissionais do sector) que me dizem chamar-se Donald Trump e Jair Bolsonaro.
5 Acabo de saber, curiosamente, que na muito recente “Champagne Party” da conservadora-liberal The Spectator (a que tive pena de não conseguir assistir) esteve presente uma enfática delegação do Labour Party, encabeçada pelo líder do partido, Sir Keir Starmer. Sir Keir tem procurado re-centrar o Partido Trabalhista, criticando com coragem vários dogmas politicamente corretos da esquerda “woke”.
Talvez por isso mesmo, as sondagens tendem a apontá-lo como possível próximo Primeiro-Ministro do Reino Unido. Mas, em vez de atacar a chamada “direita”, Sir Keir fez questão de estar presente na “Champagne Party” da revista conservadora The Spectator (faço votos de que tenham servido Pol Roger, o champagne preferido de Winston Churchill).
6 Aqui está mais um exemplo do pluralismo tranquilo da democracia parlamentar britânica. Em vez de apelos revolucionários ao “povo contra as elites”, a concorrência ocorre tranquilamente nas instituições da sociedade civil e sobretudo no Parlamento – cujos deputados têm de prestar contas pessoalmente aos seus eleitores.
Karl Popper atribuiu esta capacidade de concorrência e alternância tranquila àquilo que chamou a “virtude da imperfeição”. A democracia liberal, ao contrário das ditaduras da esquerda ou/e da direita revolucionárias, não reclama para si um modelo final de perfeição.
A democracia liberal distingue-se precisamente pela consciência da sua imperfeição – fundada, em última análise, na comum imperfeição da condição humana, como gostavam de sublinhar os Federalist Papers que inspiraram a moderada Constituição americana (por contraste, já agora, com a jacobina revolução francesa de 1789).
Aquela consciência da imperfeição gera necessariamente uma tradição de abertura à mudança tranquila — sem violência e sem revolução. Esta abertura à mudança é fundada no respeito por regras gerais, inscritas na Constituição (curiosamente não escrita, no Reino Unido).
Karl Popper gostava de recordar que estas regras exprimem basicamente as virtudes da gentlemanship: não se tomar a si próprio demasiado a sério, mas levar muito a sério os seus deveres, sobretudo quando muitos à sua volta só falam dos seus direitos. Gentlemanship, para Popper, não designava uma atitude de classe, mas uma distinção de carácter e de educação.
Talvez pudéssemos designá-la como a virtude – aristocrática, burguesa e popular – da imperfeição.