Conforme nos lembraram incontáveis especialistas, nunca, nunca, nunca se tinha visto um episódio como o de quarta-feira, em Washington, quando manifestantes favoráveis a Trump e incitados por este invadiram o Capitólio. Nunca, ou pelo menos desde 2016, quando uma quantidade imensamente superior de manifestantes invadiu as ruas de diversas cidades americanas com protestos pacíficos que envolveram tiroteios, pancadaria, fogo posto e destruição de propriedade alheia. Dado que a amnésia parece galopante, talvez valha a pena um desvio pelos tortuosos caminhos da memória.

“Milhares de pessoas estão a manifestar-se nas ruas de dezenas de cidades nos Estados Unidos.” (10 de Novembro de 2016)

“Os protestos centram-se em cidades-bastião do Partido Democrata. Em cada cidade, os manifestantes, na sua maioria jovens, foram convocados por grupos sociais e políticos de Esquerda, em choque com a escolha de Donald Trump como novo Presidente, para rejeitar a eleição.” (10 de Novembro de 2016)

“A manifestação de Portland, uma das maiores do país, adquiriu tons violentos quando pessoas encapuzadas causaram danos a veículos e lojas.” (11 de Novembro)

“A vitória de Donald Trump, na noite de terça-feira contra a candidata democrata, Hillary Clinton, tem levado desde então milhares de manifestantes a saírem à rua em protesto em várias cidades norte-americanas. Apesar de a maioria dos protestos ser descrita como pacífica, as autoridades disseram que alguns tornaram-se violentos, tendo resultado em danos de propriedade.” (13 de Novembro de 2016)

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“O presidente dos EUA, Donald Trump, tomou posse nesta sexta-feira no meio de violentos protestos em Washington.” (20 de Janeiro de 2017)

“Em Washington, mais de 200 pessoas foram detidas após horas de incidentes.” (20 de Janeiro de 2017)

Etc., etc., etc., e nem menciono os pandemónios chegados ao auge em 2020. De um lado, temos uma grotesca tentativa de assalto ao Capitólio que se resolveu em poucas horas, infelizmente com vítimas, felizmente sem grandes danos materiais. Do outro, tivemos um processo de contestação organizada, furiosa, subvencionada e demolidora que durou anos, com vastos danos físicos e sobretudo materiais. Imaginem qual dos eventos mereceu a tolerância e até a simpatia dos “media”, para não referir o entusiasmo quase sexual do enviado da SIC aos EUA. Não é um exercício complicado. Terá sido porque, ao contrário do irresponsável Trump, a dona Hillary jamais apelou à baderna? Vejamos: “‘Lutem pela América’, pediu a ex-candidata democrata à presidência” (17 de Novembro de 2016). Pois, se calhar não é isso.

Se calhar, cá e lá e em toda a parte, é apenas porque o jornalismo abdicou de informar e passou a difundir  os estados de alma dos seus praticantes. Não é a questão das “fake-news” (estrangeiro para “notícias falsas”): é a necessidade de enfeitar as notícias com doses fortíssimas de sentimento, para cúmulo um sentimento comum, monolítico, impositivo, alucinado e falsamente “progressista”, a que ninguém deve fugir sob pena de excomunhão. Lá e cá, os tumultos animados pelos apoiantes da dona Hillary foram tratados com pinças e compreensão. Os apoiantes de Trump, além do próprio, são considerados abaixo de animais. Não cabe aqui discutir a influência desta discriminação na dita radicalização da sociedade americana, em que metade dos cidadãos despreza sinceramente a metade restante, e em que só uma das metades determina o “espírito da época”. A radicalização não é inédita e a América, país de que gosto muito, saberá, espero, lidar com ela.

Não estou tão optimista sobre o futuro do jornalismo, actividade de que gostei bastante. Em determinada altura, cuja data não sei precisar, o jornalismo decidiu que a sua função consistia em mudar o mundo para melhor. Para já, conseguiu mudar o jornalismo para pior, bastante pior. Quanto ao mundo, é duvidoso que uma “agenda” anti-capitalista, embalada por “ideais” caducos, por fundamentos opressores e por um culto da “sensibilidade”, do primarismo mental, da ofensa fácil e da divisão social conduza ao paraíso prometido. Desgraçadamente, por má-fé ou pura idiotia, é nesta miséria que a informação se transformou: um instrumento de doutrina ao serviço do atraso de vida. Claro que há excepções, e a circunstância de me permitirem escrever isto prova-o. O problema é a regra.

E a regra suscita uma pergunta sem resposta: o “jornalismo” que em geral hoje se pratica procura infantilizar ou, para efeitos de sobrevivência, adaptou-se a um público infantilizado? A primeira hipótese é velhaca, a segunda é triste. Ambas conduzem uma profissão outrora indispensável pelos caminhos da irrelevância. Se o objectivo é estimular paixão e irracionalidade, as “redes” já o fazem com empenho. É evidente que a actuação de Trump foi vergonhosa. Mas vergonha maior, caso a tivessem, é a dos que alertaram para a gravidade do recente esboço de golpe, depois de justificarem sem escrúpulos os esforços golpistas dos democratas em 2016 – e, de facto, em 2017, 2018, 2019 e 2020. Em democracia, a legitimidade de semelhantes palhaçadas é sempre, sempre, sempre nula, nula como o “jornalismo” que não o admite.