O caso do cartaz, sobre as vítimas de abuso sexual na Igreja Católica, removido pela Câmara Municipal de Oeiras, é um sinal alarmante de que a censura não é uma relíquia do passado. Ações como esta colocam em risco o direito fundamental à liberdade de expressão, uma pedra angular da democracia e valor essencial para qualquer liberal.
Infelizmente, este não é o único desafio enfrentado pelas democracias contemporâneas. Junto com a censura, velha ameaça, surge uma nova arma: a desinformação digital! A capacidade de disseminar desinformação foi dramaticamente amplificada com as novas tecnologias e a capacidade viral das redes sociais. A desinformação digital é uma evolução da antiga propaganda, agora potencializada para minar as democracias liberais. A desinformação consiste na disseminação intencional de informação enganosa. Já a propaganda visa promover certas ideias ou narrativas, independentemente da sua veracidade.
Este artigo explora as diferenças entre a censura, como a que se verificava em Portugal durante o Estado Novo, e as campanhas contemporâneas de desinformação digital patrocinadas por regimes autoritários e outros atores malignos.
Durante o Estado Novo, regime autoritário que vigorou em Portugal entre 1933 e 1974 sob o comando de António de Oliveira Salazar, foi imposta uma forte censura para suprimir dissidentes e controlar a população. O “lápis azul” da censura analisava rigorosamente jornais, rádios, livros e filmes, proibindo qualquer conteúdo considerado uma ameaça ao regime. A polícia política PIDE vigiava e intimidava os cidadãos para manterem “bolinha baixa e bico calado”. Esta censura permitiu que Salazar mantivesse o poder por décadas, privando os portugueses de liberdades fundamentais.
Com o surgimento das redes sociais e plataformas digitais, surgiram novas formas de disseminar informação para milhões de pessoas instantaneamente. Isto permite que regimes autoritários e outros agentes espalhem desinformação e propaganda para manipular a opinião pública. As redes sociais com seus algoritmos que priorizam conteúdo instigante, muitas vezes amplificam notícias falsas e narrativas políticas polarizantes.
A desinformação explora vieses cognitivos e emocionais dos utilizadores. Notícias falsas que provocam medo e raiva espalham-se mais rapidamente. Teorias da conspiração atraem aqueles que desejam explicações simples para eventos complexos. Câmaras de eco nas redes sociais reforçam crenças pré-existentes e promovem linhas de pensamento homogéneo dentro de bolhas tribais. Os algoritmos favorecem conteúdo engajante, independentemente da sua veracidade. Tudo isto permite que a desinformação influencie a opinião pública de forma sem precedentes, contribuindo para os desafios que enfrentamos atualmente: pânico sobre imigração, ascensão da extrema-direita e extrema-esquerda, islamofobia, movimentos anti vacinação, entre outros.
A desinformação digital faz parte do arsenal de ameaças híbridas utilizadas por regimes autoritários contra suas rivais democráticas. Assim como o ciberataque, a coação económica ou migrações induzidas, a desinformação é uma nova faceta dos conflitos no século XXI. Há anos que os rivais da Europa, particularmente Rússia e China, conduzem campanhas massivas de desinformação focadas no Ocidente como métodos de baixo custo e baixo risco para fomentar discórdia e promover suas narrativas. Para isso, usam ‘troll farms’ para espalhar ‘fake news’, teorias de conspiração e conteúdos enganosos. Ao contrário da censura, que limita o acesso à informação, a desinformação cria uma avalanche de conteúdo controverso e falso para causar confusão, minar a confiança nas instituições e influenciar eleições.
A recente invasão russa da Ucrânia é o mais novo campo de batalha online, com plataformas como o Telegram ou X (a plataforma anteriormente conhecida como Twitter) inundadas com mentiras sobre a ‘nazificação’ da Ucrânia. Um outro exemplo foi a interferência nas eleições americanas de 2016, onde a Rússia espalhou desinformação nas redes sociais para favorecer Donald Trump. Mensagens falsas sobre candidatos foram direcionadas a eleitores vulneráveis. Após a vitória de Trump, as investigações revelaram a extensão desta operação russa, que feriu gravemente o processo democrático americano e expôs a vulnerabilidade das democracias ocidentais perante tais ameaças.
As grandes plataformas digitais precisam assumir mais responsabilidade no combate à desinformação, indo além da simples verificação de factos. O Regulamento dos Serviços Digitais recentemente aprovado pela União Europeia veio exigir mais transparência e moderação às plataformas digitais, incluindo a remoção de conteúdo ilegal e novos mecanismos para combater a desinformação. Isto obrigará as plataformas a alterar os seus algoritmos para deixar de amplificar conteúdo falso e prejudicial, bem como banir canais e utilizadores que espalham desinformação patrocinada por governos. No entanto, é preciso ter cautela para que a regulação não vá longe demais e acabe por limitar indevidamente a liberdade de expressão, como alertou a Iniciativa Liberal no passado em relação à Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital.
A desinformação online representa um sério desafio às nossas democracias. No entanto, é possível enfrentar esta ameaça sem comprometer a liberdade de expressão, um valor fundamental. Através da educação, transparência e união de esforços, cidadãos, governos, meios de comunicação social e sociedade civil podem equipar-se para resistir a esta ameaça.
A educação para a literacia mediática deve começar nas escolas, para que os cidadãos desenvolvam capacidades para avaliar criticamente a informação à sua disposição. As organizações independentes de verificação de factos também desempenham um papel vital neste combate. Por seu lado, os líderes políticos devem assumir um discurso responsável, abstendo-se de amplificar narrativas extremistas e falaciosas. Além disso, é essencial que as democracias cooperem na investigação e responsabilização pelas campanhas de desinformação promovidas por outros países.
Proteger a democracia exigirá empenho constante face a um fenómeno em mudança. O caminho não é fácil, mas não tenho dúvidas de que com vigilância, coragem e diligência poderemos construir democracias liberais informadas e resilientes, capazes de florescer num mundo digital!