Pela primeira vez em 30 anos, a economia da China crescerá menos do que as economias dos países vizinhos. Pequim projectou 5.5% de crescimento económico para 2022. As projecções do Banco Mundial e do FMI são de 2.8% e de 3.2%, respectivamente. Na China, a divulgação das projecções algo embaraçosas foram retardadas pelo Partido. Nada poderia perturbar a tranquilidade celestial do seu grandioso congresso. A crise no sector imobiliário persiste, apesar das injecções sub-reptícias de capital estatal e das elaboradas tentativas de camuflagem financeira. O desemprego jovem é de cerca de 20%, mas há quem acredite que seja superior. O partido sabe que uma juventude economicamente marginalizada e ansiosa pode ser politicamente perigosa.

A “legitimidade eudemónica” que Feng Chen caracterizou brilhantemente num artigo publicado em 1997 na revista Polity ainda não parece estar em causa, mas nos corredores do poder as causas da insurreição de Tiananmen e dos mais recentes tumultos laborais, ecológicos e pandémicos não foram esquecidas. Os efeitos económicos recessivos da pandemia, da Guerra da Ucrânia, as crescentes tensões geo-estratégicas em torno de Taiwan e uma diplomacia económica agressiva que promove a dependência e o clientelismo estão a agravar tensões que dificultam cada vez mais o acesso da China aos mercados ocidentais e não só. O muito temido decoupling ou desacoplamento já começou. Gradualmente, é certo, mas inexoravelmente.

Outros países Asiáticos, alguns dos quais firmemente alinhados geo-estrategicamente com Washington, Tokyo, Canberra e Seoul, têm absorvido boa parte do Investimento Directo Estrangeiro (IDE) que outrora teria sido destinado à China. O sector tecnológico chinês, profundamente dependente de tecnologias (semicondutores etc.) que não controla, já sente os efeitos do decoupling de forma particularmente aguda.

É certo que o regime ainda não se depara com uma grave crise de legitimidade. A pandemia tem sido politicamente instrumentalizada e permitido à liderança reforçar a vigilância e deflectir a responsabilização pela sua inépcia no plano económico. As purgas levadas a cabo por Xi, muitas das quais hipocritamente legitimadas pelo combate à corrupção, reforçaram ainda mais o seu poder. A China é, hoje, um sistema totalitário personalista: o partido controla o país, mas é Xi que controla o partido.

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Talvez não seja descabido especular que a “higienização” do regime  tem como principal causa a crença de que uma tempestade se aproxima no horizonte e de que é absolutamente imperativo garantir a robustez e a capacidade repressiva do omnipotente partido. É precisamente a expectativa de uma nefasta confluência de instabilidade externa e interna que transparece inequivocamente no longo discurso de Xi no Congresso.

A investigadora Yu Chie, num interessante podcast da Chatham House, analisa o discurso do líder supremo e conclui que Xi acredita que a deterioração das relações económicas da China com o Ocidente é um facto irreversível, algo que, segundo a investigadora, certamente induzirá Pequim a alterar as suas prioridades no domínio da política estrangeira. Doravante, diz Yu Chie, Pequim reforçará substancialmente os seus esforços no Sul e especialmente na Ásia Central. Este reforço certamente será rápido e assertivo. Só assim Pequim poderá mitigar os custos decorrentes de uma presença decrescente nas economias ocidentais.  O poder de compra dos consumidores do Terceiro Mundo e da Ásia é comparativamente muito menor. Por conseguinte, uma diminuição dramática no volume e valor das exportações Chinesas terá repercussões significativas nas reservas de capital ao dispor do partido, o que poderá por em causa o acordo paternalista ou “eudemónico” que garante a legitimidade do regime desde o fim da era Maoista: bem-estar material a troco da docilidade política.

A China é, por ora, um rival geo-estratégico do ocidente que ainda não projectou o seu poder na arena militar-política de forma ameaçadora. Aos olhos de boa parte das elites políticas e dos públicos ocidentais, a Guerra da Ucrânia transformou a Rússia num inimigo. Não obstante esta e outras importantes diferenças entre a China e a Rússia, como o grau de animosidade que as separam do ocidente, Pequim e Moscovo compartilham um inimigo comum. É natural que este facto induza uma maior cooperação entre Xi e Putin. Todavia, muito dependerá da forma como as elites políticas russas, especialmente os nacionalistas acirrados pela Guerra da Ucrânia, interpretam uma ainda mais assertiva presença Chinesa na Ásia Central, impelida pela insaciabilidade do consumismo chinês e pelo imperativo de obter acesso a vastos recursos naturais e a mercados que permitam a viabilidade do contracto paternalista que legitima o poder do Partido Comunista.

A China é, desde 2003, a potência económica dominante na Eurásia. Mas, nos domínios militar, político e cultural, é a Rússia que predomina. Fiel à sua doutrina estratégica que privilegia a prudência e a influência sub-reptícia, Pequim tudo fará para expandir o seu poder naquela região imensa ao mesmo tempo que tenta preservar o actual modus vivendi simbiótico com Moscovo. Não será fácil manter este delicado equilíbrio.

Marlène Laruelle, eminente investigadora da política Russa, num interessante artigo recentemente publicado na revista Foreign Affairs (“The End of the Post-Soviet Order” 13/10/22), defende a tese de que a Guerra da Ucrânia enfraqueceu significativamente a Rússia no Cáucaso e na Ásia Central. Se as elites políticas do Cáucaso e da Ásia Central, que há muito dependem militarmente de Moscovo, começam a duvidar da capacidade russa para garantir a segurança dos regimes autocráticos que lideram e para impedir o ressurgimento do irredentismo étnico e a emergência de movimentos cívicos que lutam pela democratização. A China, a Turquia, o Irão e outras potências certamente explorarão esta debilidade para promover os seus interesses. Na política internacional não existem vácuos de poder.

Dito isto, dados do Barómetro da Ásia Central referentes ao período 2017-2019 revelam que os povos da Ásia Central preferem maioritariamente a Rússia como aliado e que, não raramente, suspeitam da China. Terá a Guerra da Ucrânia alterado fundamentalmente esta percepção da Rússia na Ásia Central? Tanto quanto sei, ainda não é possível responder a esta pergunta de forma satisfatória.

O que une a China à Rússia é a existência de um inimigo comum. O que as separa é a luta não declarada pelo domínio da Ásia Central. Poderemos assistir a uma renovação do cordial modo de co-existência actual, isto é, o de uma separação de esferas de influência, com a Rússia a permanecer o principal actor no domínio da segurança e a China a consolidar a sua preponderância económica. Não será fácil administrar esta precária separação de poderes ou de esferas de influência. Os dois regimes estão sujeitos a pressões internas colossais que ditam que o compromisso seja o leitmotif das suas políticas centro-asiáticas. Do ponto de vista do bom-senso geo-estratégico, esta poderá ser a fórmula mais racional e defensável, apesar da História nos ensinar que a ambição de uma potência ascendente e o revanchismo de uma grande potência enfraquecida raramente se vergam perante a racionalidade.