Como regra geral, não simpatizo com quem ganha prémios. Tendo a suspeitar de consensos pela proverbial afirmação do Kierkegaard que abracei há décadas: “a multidão é falsidade”. Creio que a convergência intelectual que pressupõe a entrega de um prémio tem mais de convergência do que de intelectual.

Claro que alguém pode dizer que uma afirmação como a minha é típica de quem nunca recebeu prémios. E quem sou eu para negar? Se tivesse recebido prémios teria recebido também um poderoso incentivo a apreciar a tal convergência intelectual que os permite. Afinal, grande parte dos nossos princípios bate continência aos nossos ressentimentos.

Mas quero acreditar que a minha ausência de simpatia por quem recebe prémios se sustenta na fé. Se Cristo salva através do oposto do que um prémio é, não deveriam todas as entregas de prémios após a crucificação levantar, no mínimo, suspeitas no coração dos cristãos sinceros? Se Jesus obteve o consenso do castigo, por que comemoram os homens o consenso do prémio? Se a palavra que nos criou foi reprovada por nós, quem é que a nossa palavra julga que é para aprovar seja quem for? O fenómeno de pessoas que entregam prémios a pessoas constitui a blasfémia última no mundo que censurou Deus.

Não negando nada do que escrevi nos primeiros três parágrafos, houve um prémio que esta semana foi anunciado que me deixou satisfeito. A Adélia Prado ganhou o prémio Camões. A Adélia Prado é a maior escritora viva da nossa língua (já tinha feito esta afirmação num texto aqui publicado no Observador em 14 de Agosto de 2022, chamado “A diferença entre ração e refeição”). O meu amigo Filipe Costa Almeida celebrou a novidade comigo e com o Manuel Fúria numa conversa de internet que mantemos no Signal e a minha reacção natural foi a alegria. Ou seja, apesar de todas as minhas más vontades contra prémios, quando gosto de quem os ganha até que me junto à multidão. Não consigo ser o kierkegaardiano puro que queria.

Vou terminar este texto dando um prémio que é um poema da Adélia. É difícil escolher um mas neste, chamado “Gênero”, encontro tanto do que gosto dela: não se satisfazer com menos do que Deus, não se fazer da santa que não é, admirar a força do sexo, descobrir a beleza sagrada da vida do bairro brasileiro, a piada no meio do solene e o solene no meio da piada, entre outras coisas.

Desde um tempo antigo até hoje,
quando um homem segura minha mão,
saltam duas lembranças guarnecendo
a secreta alegria do meu sangue:
a bacia da mulher é mais larga que a do homem,
em função da maternidade.
O Osvaldo Bonitão está pulando o muro de Dona Gleides.
A primeira, eu tirei de um livro de anatomia,
a segunda, de um cochicho de Maria Vilma.
Oh! por tão pouco incendiava-me?
Eu sou feita de palha,
mulher que os Gregos desprezariam?
Eu sou de barro e oca.
Eu sou barroca.

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