Donald Trump, a braços com três crises simultâneas – a sanitária, a social e a económica — invoca Deus. Numa cenografia bíblica, o gás lacrimogénio que usou para dispersar as manifestações antirracistas provocadas pelo assassinato de George Floyd ainda a dissipar-se, Trump toma da sua filha Ivanka uma Bíblia para se fazer fotografar com ela, em frente da Igreja de St John, a Igreja dos Presidentes. O simbolismo não podia ser mais claro. Trump invoca o Cristianismo dos pais fundadores, fazendo-se herdeiro do nacionalismo americano e usando-o para legitimar o uso do exército para combater as manifestações. E a sua versão do nacionalismo americano é a exclusivista e racista, a que tem usado para polarizar a sociedade americana, e que tenta reativar para mostrar que Deus está com o presidente, e que o protege contra o inimigo. À retorica Trump junta os atos: defende a rápida autorização da retoma do culto contra as restrições impostas pela pandemia, autoriza o uso de fundos estatais para pagar os salários de pastores e padres em necessidade, medida tabu nos EUA dada a estrita separação entre Igreja e Estado na tradição constitucional dos EUA.
Longe de se fotografar com a Bíblia durante a pandemia, Xi Jinping, tenta escondê-la. Na China, onde o modelo de crescimento económico está em declínio, também o Cristianismo é um fator político de peso, mas desta feita como ameaça que é preciso controlar, se possível erradicar. Como parte da estratégia de repressão que tenta impor a qualquer ameaça ao controle total do partido, o Partido Comunista Chinês anunciou esta semana que iria publicar uma tradução oficial da Bíblia. O objetivo é não só submeter a mensagem Cristã, mas controlar também a própria difusão física, resultando no monopólio do partido da impressão e distribuição da Bíblia. De todas as religiões que o partido reprime, o Cristianismo, em particular a versão subterrâmea e independente, é visto no Partido Comunista Chinês, pelo seu caracter supranacional e o seu apelo à liberdade individual, como o mais perigoso para o regime. Xi Jiping foi já bem-sucedido em controlar a Igreja Católica Chinesa independente, num acordo em 2018 com o Papa Francisco sobre a nomeação dos bispos que efetivamente destruiu a autonomia da igreja chinesa, até então resistente ao controle do partido. A crise sanitária e económica – que desestabiliza o Estado – levou a esta nova medida – que afeta transversalmente todas as igrejas cristãs.
Na Europa, de forma mais subtil, também a marca do Cristianismo político é evocada por Merkel com a frase “o Estado Nação já não é mais suficiente”. A Chanceler Merkel, para legitimar o abandono do nacionalismo económico que a Alemanha tinha adotado desde a crise das dividas soberanas e legitimar as medidas extraordinárias de resposta à crise económica de 2020, evoca a fórmula que sintetizou o universalismo Cristão e o nacionalismo conservador nos finais dos anos 40. Os cristãos, nomeadamente os Católicos, cuja doutrina política propunha a superação do Estado nacional, reconhecem no início da Guerra Fria a necessidade de os restaurar para defender a Europa Ocidental do perigo soviético. Na integração europeia, os partidos Democratas Cristãos encontram uma fórmula ambígua que lhes permite conciliar a sua visão universalista com o Estado nacional e a democracia liberal. A Democracia Cristã vê-se assim como fiel depositária da nova ordem multilateral Europeia. Também os sociais democratas, os liberais e os nacionalistas, para resistir à força dos movimentos comunistas, se vêm obrigados a formular um projeto com maior apelo e visão do que a mera reposição dos Estados Nacionais. Desta síntese surgiu uma fórmula ambígua e flexível que permitiu a construção das instituições multilaterais europeias e a manutenção da autonomia dos Estados Nação. A líder da Democracia Cristã Alemã Merkel recupera agora esta fórmula Europeia de “que os Estados Nação já não são suficientes” (mas também não são dispensáveis). A dar uso ao nacionalismo Cristão estão Viktor Orbán, Jarosław Kaczyński e Matteo Salvini, não para construir a Europa e salvar a democracia liberal, mas para reforçar o nacionalismo e o autoritarismo. Merkel e os seus parceiros estão focados na urgência de reinventar a narrativa da integração Europeia, ao mesmo tempo que espreitam sobre o ombro o resultado da conversa de Trump e Xi Jinping com Deus.