Um dos templos budistas menos visitado pelos turistas em Quioto ergue-se numa das colinas a nascente da cidade. Do terreiro onde se situa o edifício sobe-se por uma vereda até chegar a uma espécie de jardim onde se venera uma imagem de Kannon, o bodhisattva dispensador de misericórdia. À sua volta encontram-se inúmeras pequenas estátuas do Jizo-sama, a divindade tutelar das crianças, todas vestidas com bibe e barrete encarnados. Estas estátuas representam mizuko, bebés d’água, crianças que morreram antes de nascerem, ou poucas semanas depois de verem a luz. Segundo o Budismo, estas crianças vagueiam desorientadas junto às margens de Sanzu-no-kawa, o rio que separa o reino dos vivos do dos mortos, esperando que alguém as ajude a atravessá-lo.
À entrada do templo um cartaz recorda aos pais que se devem arrepender de ter arrancado estas crianças com violência ao seio materno e que devem orar por elas. E de facto são muitas as mães, mais que os pais, que visitam este templo com o desejo de libertarem os seus filhos das margens de Sanzu-no-kawa através da oração e de, explicam os psicólogos, também se libertarem a si próprias do trauma psíquico que sofrem ao tomarem consciência de terem morto o próprio filho.
Trauma que ocorre apesar de o aborto e o infanticídio serem praticados no Japão, desde tempos imemoriáveis, sem serem acompanhados de sanção criminal ou estigma social.[nota 1] Já no Sumário dos erros en que os gentios do Japão vivem, compilado em 1556 por Baltasar Gago (c.1518—1583), se explica que a sua prática era corrente porque o demónio “defende [proíbe] o parir pola enveia que tem dos que nascem para poder ir à gloria que el demónio perdeo. E por iso não hé pecado nem estranhado antre eles tomar beberagens para matar a criança no ventre ou depois de nascida.” No entanto deve-se notar que, quase sem exceção, o aborto e infanticídio eram praticados apenas em situações de penúria extrema. Este facto já tinha sido notado por Luís Fróis (1532—1597) no século dezasseis: “Acertou huma mulher mossa christã e pobre, por persuasão de sua mãy, que era ainda gentia, a fazer um aborzio, couza muito corrente em Japão, máxime na gente pobre que não tem possibilidade para sostentar muitos filhos.” (História de Japam, segunda parte, C. 36º) Como a grande maioria da população japonesa vivia no limiar da sobrevivência até à introdução do capitalismo em meados do século 19, o número de abortos e infanticídios foi sempre muito elevado até que a “exploração do homem pelo homem” começou a tirar os japoneses da indigência.
Para além da miséria, outra explicação frequente para a prevalência histórica do aborto e infanticídio numa população maioritariamente budista, religião que proíbe rigorosamente o tirar a vida, preceito interpretado com um extremismo que leva alguns dos seus aderentes a serem estritos vegetarianos, é atribuída aos frequentes períodos de decadência moral que ciclicamente afetaram o Budismo japonês. Durante esses períodos os bonzos dedicavam-se à política, à guerra, ao comércio e a gozar a vida e descuravam o ensino e a prática dos preceitos transmitidos nas sutras. Isto até levou alguns historiadores recentes, menos atentos ao acervo documental disponível e mais propensos à construção de narrativas ideológicas, a dizer que o Budismo não condenava nem aborto nem infanticídio.
Mas injunções contra o assassínio de crianças nunca faltaram no Budismo, quer em eruditos textos, quer em gráficas pinturas murais. Um exemplo destas últimas encontra-se no templo Kikusui, filiado na seita Sōtō Zen e situado na prefeitura de Saitama, fundado em 1616. Neste templo pode-se ver no canto inferior de um quadro antigo uma jovem mãy a asfixiar a sua criança. À esquerda em cima, está a mesma mulher, representada claramente como um demónio, a praticar esse ato de impiedade. O texto explica: “O estado mental de uma pessoa que devolve um bebé”. Kogaeshi, ou “devolver o bebé” é um antigo eufemismo japonês para designar o assassínio cometido por aborto ou infanticídio, tal como o são hoje “saúde reprodutiva” ou “interrupção voluntária da gravidez”. E o texto continua a explicação sentenciando que uma mulher que mata o seu próprio bebé não terá qualquer escrúpulo em matar outras pessoas; que o “devolver o bebé” é um crime medonho, uma ação desapiedada que nem os animais se atrevem a fazer; que quem o pratica receberá o karma apropriado aos seus atos; e que quem o já tiver cometido deve pedir perdão ao filho que assassinou “recitando nenbutsu, daimoku, darani ou as sutras”.
Os templos dedicados a ajudar os bebés d’água perdidos nas margens de Sanzu-no-kawa, raros antes da segunda Guerra Mundial, cobrem hoje todo o Japão. Curiosamente agora não é a miséria que serve de desculpa à atrocidade, mas a calosidade ética gerada pela abundância acompanhada do silêncio dos bonzos que não previnem os seus paroquianos que o karma de quem aborta é, como previne o quadro no Templo Kikusui, “a reincarnação como chikusho”. [nota 2]
E em Portugal, será que algum dos nossos bonzos se atreve a subir ao púlpito para explicar aos seus paroquianos a imoralidade do todo o tipo de assassínio e para os prevenir do karma que lhes está destinado ao matarem, ou colaborarem na morte, de bebés d’água? Ou será que o nosso Budismo não estará também moralmente em crise?
(O αvtor, tαl como Bαlthαsαr Gαgo e Luís Fróis, não segve α grαfyα do nouo Acordo Ørtográfico. Nem α do αntigo. Escreue como qver e lhe αpetece.)