1 A natureza humana costuma ser de bom auxílio para o que espanta ou confunde. Quando não percebo o que observo, vou lá e aprendo muito. Um gesto que porém já conheceu melhores dias: tornou-se hoje um exercício complexo descodificar as prodigiosas semanas que politicamente vivemos. Os dias têm produzido espanto em abundância na ultrapassagem das linhas que — julgar-se-ia — balizam a convivência e a urbanidade entre pessoas normalmente constituídas. Ou pelas quais — em princípio — o ser humano se costuma decentemente reger, na política ou fora dela — mas agora é de política que falo, estranhando as relações ditas “humanas” entre protagonistas, pares, concorrentes ou adversários. E não preciso de evocar o Estado de Direito para rejeitar a admirável, digamos, plasticidade, dos últimos comportamentos socialistas.

2 São uns atrás dos outros o que logo deixa alertas para quem observa: hábito do poder? Uso privativo do poder? Excesso de poder ? O carrocel de insultos, agravos, abusos, humilhações, parece não conhecer paragem sem que a ninguém do extraordinário universo governativo apeteça apear-se para lhe abrandar o descontrole. Talvez porque quando o exemplo vem do alto, o resto segue o passo. E aqui veio mesmo do alto: não me lembro de ter ouvido palavras tao despropositadamente reles, rudes, rasteiras de um chefe do governo sobre o líder da oposição como ouvi ao primeiro-ministro referindo-se a Rui Rio. Sim, já foi falado e lamentado, que importa? Estas coisas têm que ser ciclicamente lembradas. Pode ser que um dia haja algum sinal exterior de António Costa de que vive no mesmo mundo dos que se espantaram com o lance.

3 Quando o infeliz ministro Cabrita adjectiva pejorativamente um partido político fá-lo não só porque nunca lhe explicaram — e ele sozinho não chega lá — a responsabilidade de representar o Estado, mas sobretudo porque se sabe seguro: permaneceu no cargo, sem mácula nem remorso, após o assassinato de um estrangeiro à guarda de um serviço sob a sua responsabilidade, cometido no aeroporto da capital de um país antigo e europeu. Porque não há-de insultar que não deve se é de borla? E se não hesitou em entrar de madrugada, com policias, cães e imigrantes tirados a força de uma enxerga, num aldeamento turístico privado mesmo que “insolvente”, é porque sabe que pode: os socialistas já mostraram que são bons no exercício da imunidade e da impunidade (Veja-se por exemplo o modo solto e desenvolto como “requisitam”, e sempre pelas razões erradas). A titular da Justiça — sim, relembremo-lo — ignorou olimpicamente o resultado de um concurso para um cargo na UE a cumprir por um português, substituindo a preparada vencedora que ficara em primeiro lugar por uma conveniente escolha política. E apesar das deploráveis démarches ocorridas entre Lisboa e Bruxelas, e do trânsito de documentos (sempre insatisfatórios) para cabal explicação da escolha do governo português perante os responsáveis europeus, a vida continuou: desde quando é que os proprietários do mando se incomodam com os não proprietários?

O tom estranhamente deslocado usado por mais de uma vez pelo ministro da Defesa para com ex-chefes militares também causa surpresa: que desconforto justifica que se evoquem “manobras escusas de uma agremiação de antigos chefes militares”. Assim se vituperando os melhores das Forças Armadas por terem “ousado” discordar do teor e conteúdo de uma projectada reforma do ministro. Visto de fora não só está mal explicado (que diagnóstico conduziu à necessidade desta reforma?) como torna verosímil que a tal “agremiação” prefira argumentos em vez de acusações de “manobras escusas”. Um dia os socialistas descobrirão — espantados — que as sondagens podem não ser tudo.

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E agora há também isto: sob a capa da lisura, da cautela, do (nobre) cuidado com a falsidade informativa na era do digital, surgiu inopinadamente uma carta – as missivas podem ser perigosíssimas — propiciadora de abuso. Chama-se Carta de Direitos na Era Digital e estende-nos um solicito guarda-chuva contra os perigos das fake news. Usando porém de critérios onde não há fronteira definida entre o trigo e o joio, havendo farto palco para a subjectividade, daqui à perseguição em nome de uma “boa causa” pode ir um passo. Mau passo. Deus nos livre de mais essa. (Ou muito me engano ou não gosto disto.)

4 Há uns anos João Soares, ministro de António Costa, prometeu umas bofetadas a um colunista que o tinha irritado. O chefe do governo não gostou e agiu em conformidade: então não era verdade que “um membro do governo até no café permanecia um membro do governo?”. Era: João Soares foi para casa. Sucede que nessa altura o primeiro-ministro abusava provavelmente menos da coisa pública; estava menos farto; tinha mais pudor; não mandava sondar Bruxelas sobre um possível destino europeu; o seu governo não era tão profissional a pulverizar as linhas divisórias da decência. O certo é que hoje a regressão — cívica, política, moral — vê-se a olho nu: na desqualificação socialista da política; na participação activa do PS na mediocratização do debate público; no cerco às instituições e depois nas tentativas da sua captura; no uso da arrogância como instrumento de comunicação; na prática governamental da impunidade; na imunidade de que PS e Executivo se acham possuídos para tudo se permitir.

Todos os sinais do fim de um ciclo politico parecem subitamente acesos (mesmo se ainda sem data marcada, não é esse o ponto).

5 Nos antípodas disto tudo — e mudando felizmente de assunto – está um cavalheiro cujo solitário percurso à frente do Sporting me habituei a ir observando da minha janela benfiquista. A sua jovem e formidável equipa – muitos trabalhando pro bono – talvez não goste que eu considere que o percurso de Frederico Varandas até a vitória se fez solitariamente, quando todos eles disseram e estiveram tão activamente presentes. Sucede que a vida me ensinou que quando as marés altas, as intempéries e as agruras se seguem por muito tempo e sem trégua como ocorreu com Varandas – para resistir sem desistir, a solidão está lá: é um dos garantes da capacidade de resistência. A resistência não a pandemias e confinamentos, estádios fechados, academias encerradas, prejuízos — o que já não seria dizer pouco –, mas à mentira, ao insulto, à armadilha, à inveja, à manipulação, à intriga, ao implacável combate à sua liderança, dentro e fora do seu clube. Sério, são, simples, persistente, capaz, corajoso, Frederico Varandas fez mais do que levar o seu clube à vitória do campeonato 19 anos depois e por isso se transformou num líder: devolveu-lhe a decência, a honra perdida, os valores esquecidos, o caracter, a nobreza do desportivismo. Permitam-me que ache isto mais decisivo do que ter reduzido o “budget “ para metade: é que o ar do futebol nacional ficou mais limpo.

6 Por nada deste mundo deixarei de ser benfiquista. Por nada deste mundo teria deixado de escrever este elogio.

PS: Uma imensa melancolia ontem. Mais um dos grande que parte. Paulo Gaio Lima era um grande músico. E por isso foi um excepcional violoncelista e um magnífico professor. Tão novo ainda… Os violoncelistas que hoje nos encantam, requesitados e aclamados, aprenderam tudo com este homem doce,pedagogo que também sorria com o olhar. Um dia tocou para mim o primeiro andamento da Suite para violoncelo nº 1 de Bach. Partiu sem que eu pudesse despedir-me nem oferecer-lhe as minhas lágrimas. Consolo-me sabendo como o céu deve estar agora unidamente, silenciosamente, a ouvi-lo. Jubilosamente a ouvi-lo.