A dissimulação faz parte da política, diria Machiavelli, por boas razões. É ainda mais prevalente na arena internacional, onde estados soberanos, agindo num contexto anárquico, tudo fazem para maximizar os seus interesses. Ao contrário dos regimes liderados por autocratas, os estados e os governos das democracias liberais estão sujeitos as opiniões públicas, ao escrutínio das oposições políticas, dos media e, em alguns casos, até do poder judicial. O polémico caso da “justificação” da segunda Guerra do Iraque demonstrou que a dissimulação pode ter custos políticos consideráveis, não apenas para a administração que dissimulou, como para as subsequentes. Obama não agiu de forma decisiva quando a sua infame “linha vermelha” foi flagrantemente transposta pela Síria e pela Rússia porque hesitou perante a possibilidade de ter de justificar uma intervenção militar mais substantiva à opinião pública Americana. Preferiu sempre os menos politicamente onerosos drones e as intervenções cirúrgicas das forças especiais.  O controverso legado da segunda invasão do Iraque ainda restringe a amplitude de acção dos decisores americanos. Nas autocracias, onde a comunicação social é controlada por partidos totalitários ou por ditadores omnipotentes, a dissimulação faz parte do ethos do regime e, não raramente, da própria cultura política.

Se, num contexto de feroz competição, estado X sabe que estado rival Y dissimula a sua agenda e o seu modus operandi, X terá de optar pela mesma estratégia. Nenhum estado pode dar-se ao luxo de competir com outros estados num sistema anárquico sujeito à desvantagem da transparência ou da sinceridade. Se a dissimulação for entendida como um atributo da natureza humana, o infernal “jogo de espelhos” é inevitável. Seria absurdo assumir que todos as estratégias e tácticas dos estados podem ser ocultadas. É sabido que China pretende expandir dramaticamente e a curto-prazo o seu poder na Ásia Central e no Sudeste Asiático. A Rússia deseja re-instituir a sua esfera de influência na Europa de Leste e preservar o seu poder político-militar na Eurásia. Todavia, a dissimulação persiste mesmo se, ou sobretudo quando, os desígnios dos estados são evidentes. Em situações de transparência estratégica, a dissimulação é executada ao nível táctico, servindo o propósito de ofuscar a hierarquização das preferências dos líderes políticos, os timings da sua implementação e a coordenação de capacidades que visam a sua realização.

O posicionamento da China em relação à Guerra da Ucrânia evidencia claramente uma estratégia de ofuscação. Pequim recorreu à ambiguidade estratégica para ocultar as verdadeiras preferências do Comité Central, que ainda permanecem envoltas numa densa neblina. Um dos problemas mais espinhosos que confronta qualquer estado ou governo é o da simultaneidade de interesses contraditórios. Se a China apoiasse a Rússia diplomaticamente e materialmente de forma inequívoca, é provável que o seu acesso aos mercados ocidentais, dos quais depende crucialmente, fosse posto em causa. Contudo, Pequim também não pode dar-se ao luxo de hostilizar a Rússia, de quem depende vitalmente para manter a estabilidade geo-estratégica na Ásia Central e para assegurar o fornecimento de energia barata que garante a competitividade dos seus produtos nos mercados globais. No que diz respeito à Guerra da Ucrânia, a verdadeira política estrangeira Chinesa é inteiramente clandestina.

Jamais saberemos se a dissimulação engendra, ou emana da, paranoia. Seja como for, a paranoia confere validade a possibilidades imaginárias. Um dos mais conhecidos e interessantes casos da relação simbiótica da dissimulação com a paranoia foi o projecto Star Wars da Administração Reagan. Cientificamente, a projecto era simplesmente inexequível. A liderança Soviética, historicamente e filosoficamente propensa às mais fantásticas teorias da conspiração, acreditou na viabilidade do projecto Americano e encetou um programa colossal de investimento em pesquisa militar que depauperou ainda mais o estado soviético, debilitando a sua capacidade de assegurar plenamente o paternalismo que garantia a precária aquiescência popular do todo-poderoso partido comunista. O verdadeiro objectivo do programa Star Wars foi o de projectar uma possibilidade fictícia como verdadeira e induzir o Kremlin a direccionar recursos preciosos para combater uma farsa. Esta foi uma das mais bem sucedidas campanhas de dissimulação ou de desinformação de sempre, apesar de não ter sido decisiva no colapso da USSR.

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