Da última vez que vi as notícias, era Agatha Christie. Antes, tinha sido Enid Blyton. Não sei qual será o próximo autor a ter os seus livros reescritos, de modo a evitar ofensas e melindres. Quando é que decidimos passar a ser estas florinhas frágeis, a quem a menor brisa de outros tempos e outras mentalidades causa calafrios e desfalecimentos? Ainda me lembro do tempo em que nos ríamos dos pudores e puritanismos do passado. Não foi há muitos anos. Sorríamos então com as parras de vinha que os antigos cautelosamente usavam para atenuar a nudez em estátuas, ou com as edições expurgadas para “uso do Delfim”. Somos agora todos delfins, e mais do que isso: somos também inquisidores vigilantes, e caçadores de bruxas implacáveis, a impor “cancelamentos” por simples desacordo, e a exigir condenações por mera denúncia. A cultura woke mostrou-nos como em 2023 podemos ser tão obscurantistas como em qualquer das idades de maiores trevas do passado. Se fosse preciso desmontar o mito do progresso, não precisaríamos de mais.

Donde vem a força do carnaval de “fluidez de género”, “racismo estrutural”, e “pós-colonialismo”, a que chamamos wokismo? É verdade que recupera muitos ângulos do esquerdismo dos anos 1960, e que tem as suas vanguardas no activismo anti-capitalista. Mas o wokismo retira força de outras fontes. Por exemplo: supomos já não ser cristãos, mas a ideia de redenção, através de uma purificação extrema, continua a ser muito forte na nossa cultura. Podemos já não acreditar em Deus, mas acreditamos na humanidade para, sem limites, se fazer e refazer a si própria e ao mundo que a rodeia. Também sabemos que o predomínio que a Europa e os EUA tiveram no planeta nos séculos XIX e XX foi apenas um breve momento da história. Mas continuamos a querer acreditar que a salvação do mundo depende de nós. Estamos assim susceptíveis a uma espécie de imperialismo virado do avesso, que agora atribui ao Ocidente todas as culpas, como outrora lhe atribuía todas as virtudes. Convencemo-nos assim que ainda cabe ao Ocidente, expiando as suas culpas, conduzir o mundo até à luz. O wokismo explora tudo isto, e por isso funciona, mesmo na sua insensatez.

Mas acima de tudo, o wokismo tem a força que lhe dão as elites do poder. A comparação entre o actual “wokismo” e a “contra-cultura” dos anos 1960 é reveladora. Ambos pretendiam refazer comportamentos e linguagens. Mas a “contra-cultura” contestava, a partir de baixo, os poderes estabelecidos; o wokismo vem de cima, dos professores, das grandes empresas, dos governos. As elites instaladas foram, nos últimos anos, inquietadas pelo descontentamento de uma população que se sentiu vítima da globalização, e que foi de facto prejudicada pela falta de reformas. Como seria de esperar, não faltaram demagogos para a mobilizar. Chamou-se a isso “populismo”. O wokismo serviu às elites instaladas para estigmatizar moralmente, como “racistas” e portadores de várias fobias, quem assim as desafiou, e também para prevenir a discussão de assuntos incómodos. Mais especificamente, serviu ainda às esquerdas sociais democratas no governo para limitar as direitas conservadoras e liberais. Foi o interesse das elites do poder, e não o simples afã dos activistas da extrema-esquerda, que deu ao wokismo as dimensões que tem hoje. A deriva, porém, era inevitável, e o wokismo redundou na caricatura e na contradição que, por sua vez, alimentou uma indústria de cansaço e indignação com a intolerância e a polarização wokista. Dizem-nos agora, como lembrou aqui João Pedro Marques, que afinal a cultura woke nunca existiu. Entendamo-nos: está a deixar de servir aos poderes instalados.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR