A semana passada, a actriz Gina Carano, protagonista da série The Mandalorian, teve um desabafo. Deu a entender que os fãs de Donald Trump eram tão perseguidos como os judeus na Alemanha nazi. A indignação foi grande. Menos, talvez, com o despropósito da comparação, e mais com o facto de Gina Carano ter confirmado o seu apoio ao ex-presidente. A Disney, a empresa que a empregava, cortou imediatamente o mal pela raiz: Gina Carano foi despedida, a sua carreira no cinema arruinada. A ironia desta história é talvez muito óbvia: se a Disney quisesse provar que Gina Carano estava certa, isto é, que os adeptos de Trump são de facto perseguidos, não teria procedido de outra maneira. Mas que importa isso? O que importa é que uma actriz que se atreveu a apoiar Trump foi implacavelmente punida, para servir de exemplo a outros.

Durante quatro anos, nos EUA e fora dos EUA, fomos persuadidos a ver em Trump uma espécie de novo Hitler e nos EUA de que ele foi presidente uma outra Alemanha de Weimar. A qualquer momento, o fuhrer subiria à tribuna para ver desfilar as suas camisas castanhas, com as devidas cruzes gamadas. Isso nunca aconteceu, mas nem por isso os tambores da “democracia em perigo” alguma  vez se calaram. No fim do ano passado, Trump, exactamente como haviam feito os Democratas em 2016, recusou-se a aceitar que tinha perdido as eleições. Na sequência dessa sua obstinação, uma turba de centenas de indivíduos de tronco nu e com chifres de búfalo na cabeça invadiram o Capitólio. Eis, segundo os inimigos do ex-presidente, a prova do tal “golpe de Estado” que nos tinham feito esperar em vão durante quatro anos. Sim, a invasão do Capitólio foi lamentável, e Trump merece ser responsabilizado pelo ambiente em que aconteceu. Mas um “golpe de Estado” faz-se com umas centenas de indivíduos em tronco nu e com chifres na cabeça?

Donald Trump é passado, por mais que os Democratas, para estigmatizar os Republicanos, o tentem manter na agenda. Mas a perseguição a Gina Carano justifica que voltemos atrás. Durante quatro anos, só Trump representou o mal. Não, não vou dizer que ele representava o bem. Mas vou dizer que, por causa da demonização de Trump, não reparámos em muitas outras coisas. Não tivemos o direito, por exemplo, de notar que os Democratas nunca reconheceram a legitimidade da sua eleição em 2016, e que insistem ainda hoje que o candidato republicano venceu apenas devido à manipulação russa do sistema eleitoral americano (o mesmo sistema que, quando Trump perde, se torna imune a fraudes). Fomos persuadidos a deplorar a fúria e o despropósito de cada tweet de Trump. Sim, esses tweets eram frequentemente indignos de um presidente. Mas entretidos com a sua hiper-actividade nas redes sociais, não atentámos talvez em como as cadeias de televisão e a grande imprensa dita de referência, como o New York Times e o Washington Post, renunciavam a qualquer pretensão de imparcialidade, e assumiam uma cruzada sem regras, profissionais ou morais, contra a presidência. O New York Times e o Washington Post mentiram durante anos – não há outra maneira de o dizer — sobre uma pretensa ligação da Rússia à campanha republicana em 2016. Mas mais uma vez, não tivemos licença de tomar nota disso: “fake news” eram um exclusivo, uma invenção de Trump.

Trump nunca foi, para a elite política americana, senão um intruso, que os Republicanos tentaram controlar, e que os Democratas quiseram derrubar. Contra isso, Trump não teve a grandeza ou a possibilidade de fazer outra coisa, senão tentar levantar uma onda de revolta, que talvez lhe tenha dado a maior votação de sempre de um presidente candidato à reeleição, mas que não chegou para o reeleger. Acima de tudo, nunca o deixou parecer senão uma espécie de homem eternamente frustrado e zangado, a despedir colaboradores que o traíam, e a comprar brigas com qualquer jornalista que o criticasse. Não vou, portanto, dá-lo como bom exemplo a ninguém. Mas vou perguntar isto: para além dos cargos de confiança política que dependiam do presidente, quem é que Trump pôde despedir ou assustar, no sentido em que os seus inimigos despediram e assustaram? Que actrizes foram expulsas pelos grandes estúdios por fazerem declarações públicas contra ele? Mas Gina Carano foi posta na rua por o apoiar. Que jornalistas viram as carreiras prejudicadas pela sua fúria contra o presidente? Mas Scarlett Fakhar, logo depois das eleições de 2016, viu-se desempregada por publicar um post no Facebook considerado favorável a Trump. Que contas das redes sociais foram canceladas por atacarem o presidente? Mas Trump foi banido do Facebook e do Twitter. Que redes sociais foram praticamente desactivadas por albergarem inimigos de Trump? Mas a rede Parler viu-se quase fora de actividade por suspeita de ser usada por partidários do ex-presidente. Na cerimónia dos prémios Tony, em 2018, Robert de Niro gritou “fuck Trump”. Aconteceu-lhe alguma coisa? Talvez lhe tivesse acontecido, como a Gina Carano, se tivesse gritado “viva Trump”.

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Não, não se trata de defender Trump, nem de aprovar o seu estilo ou as suas ideias. O seu estilo era impróprio de um presidente, e muitas das suas ideias contradiziam a tradição conservadora-liberal que o Partido Republicano representa. Mas isso não nos deve impedir de perceber que Trump teve contra si alguns dos maiores poderes que hoje existem na comunicação social, nas escolas de ensino superior (por onde passam mais de metade dos jovens americanos), nas grandes empresas de espectáculo e de entretenimento, nas redes sociais, e, muito provavelmente, também em sectores importantes do Estado, como o FBI, que, enquanto dirigido por James Comey, fez tudo para subverter a autoridade do presidente. Porque é que, então, tivemos tanto medo de Trump? Porque todos esses poderes nos disseram para ter medo, e foi por medo a esses poderes que tivemos medo de Trump: medo de sermos despedidos do emprego, de não sermos promovidos,de não sermos admitidos ao convívio da gente respeitável, de não podermos falar em público. Esse enorme silenciamento teve este efeito: o apoio ao presidente tornou-se um fenómeno que só se pôde exprimir nas classes sociais mais baixas, entre os marginalizados, os que nada tinham a perder — os que, enfim, não corriam o risco de ser despedidos pela Disney, como Gina Carano. O que foi aproveitado para fazer do “trumpismo” uma coisa de ralé, do “povinho”, do “white trash”. Daí a enorme surpresa, quando 74 milhões de americanos votaram em Donald Trump – mais do que alguma vez votaram em Barack Obama.

Esta semana, saiu mais um “relatório europeu” sobre — para variar — o perigo da “extrema-direita”. Sim, é provável que as sociedades ocidentais estejam ameaçadas por uma deriva anti-liberal e anti-democrática. Mas também é provável que a direita chamada “populista” não seja o elemento mais relevante dessa deriva. Não porque os populistas constituam uma corrente salutar, mas porque os populistas não têm, felizmente, o poder para despedir ou calar adversários que, por exemplo, têm nos EUA os inimigos de Trump, que até ao próprio presidente  conseguiram silenciar nas redes sociais. Mais: por pior que tenha sido Donald Trump, promovido a símbolo dessa ameaça populista, é bom não esquecer que nem todo a oposição que lhe moveram era animada por uma genuína preocupação com a democracia e a liberdade. Entre os inimigos de Trump e do chamado “populismo”, estiveram e estão os mais denodados promotores desse movimento puritano e inquisitorial que, originado nos EUA, conhecemos sob os nomes de “politicamente correcto”, “cancel culture” ou “wokeness”. São as esquerdas radicais, que, mais de trinta anos após a queda do muro de Berlim, não desistiram de o reerguer. Não pretendem apenas criminalizar opiniões diferentes das suas, mas desmontar tudo aquilo que, nas sociedades, limita o alcance do poder político, como o reconhecimento de uma esfera privada, o respeito pelas comunidades históricas, ou a deferência em relação a valores acima da política, como a vida.

Esta militância só não é simplesmente um fenómeno marginal porque as esquerdas supostamente mais moderadas – Democratas nos EUA, socialistas na Europa — lhe emprestaram força legal e pública, calculando talvez que uma influência ampliada do sectarismo esquerdista inibiria a intervenção das direitas conservadoras e liberais. Foi assim que o Estado, as universidades, e as maiores empresas (como as plataformas das redes sociais) se tornaram focos de “correção política” e dos respectivos “cancelamentos”. Quase todos os dias, outra vítima do policiamento de opiniões – como, esta semana, o presidente do Tribunal Constitucional português — lembra aos que aspiram a uma carreira pública ou mesmo privada que lhes convém terem cuidado com o que dizem e até com o que há muitos anos disseram. Em Espanha, o vice-presidente do governo, Pablo Iglesias, líder do partido de extrema-esquerda Podemos, já exige o que chamou “elementos de controle” sobre a imprensa. No entanto, é sobre os populistas (a “extrema-direita”) que se fazem inquéritos e contra os populistas que se assinam manifestos. Sim, se preferirem, vigiem os populistas e repudiem-nos. Mas não sejam ridículos: medo, tenham de quem tem poder para vos despedir e calar.