No mais recente filme de Adam McKay, disponível na Netflix e nos cinemas, assistimos à história de dois astrónomos comuns que descobrem que em poucos meses um meteorito destruirá o planeta Terra. Aqueles cientistas devem alertar a humanidade para o perigo, através da imprensa, mas, perante a sua inexperiência em comunicação, e o nível de expertise de outros intervenientes, o controlo da narrativa foge-lhes das mãos e as consequências fazem-se sentir. E quanto a essa história fico-me por aqui para não estragar o divertimento de quem a quiser ver. Evoco Don´t look up porque espelha muitíssimo bem o dia-a-dia de milhares de empresários, cientistas e trabalhadores ligados à agricultura e pecuária, e ao setor agroalimentar.

Se o filme fosse feito por um de nós provavelmente só lhe alteraríamos o título para Don’t look down. É o que a narrativa vigente nos diz constantemente para fazermos. Mas nós temos mesmo de olhar para baixo, para a terra. É o nosso ofício. E por isso olhamos para a informação científica que ela nos dá, mais do que para as narrativas “instituídas”. É o que acontece, por exemplo, com o tema das emissões de Gases de Efeito de Estufa (GEE) pelo setor agropecuário.

Tem sido comummente aceite a premissa de que este setor é o que mais contribui para as emissões de GEE para a atmosfera. E por mais que os dados oficiais demonstrem o contrário, este facto parece não encaixar nas verdades coletivas partilhadas.

Nesta matéria os políticos têm especial responsabilidade porque alguns repetem mentiras e outros não as corrigem. Atualmente é dado adquirido que o controlo da narrativa se sobrepõe a tudo, e sobretudo, à ciência.

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Relativamente às emissões de GEE a nível nacional, para contrapor alguns factos à narrativa, temos informação do Inventário Nacional de Emissões, que apresenta dados de 2019: o setor energético é o que gera mais emissões: 69,9%. Os transportes contribuem com 28,8% das emissões totais. A produção de alimentos no setor agrícola gera 10,8% das emissões totais do país, sendo que à produção de alimentação de origem animal podem alocar-se 7% das emissões totais.

Neste cenário, e tendo em conta que todos os partidos políticos portugueses assumiram, e bem, o desígnio europeu de combate às alterações climáticas, é no mínimo estranho que nem um deles tenha referido este facto quando o tema do clima surge em debate. Com isto, os empresários e trabalhadores deste setor ficam estupefactos.

No nosso mundo, quando olhamos para baixo, apesar de nos dizerem para não o fazermos, o que vemos é preocupante: não somos os principais contribuidores para as emissões de GEE, apesar de sermos delas o bode expiatório, os preços das principais matérias-primas estão em alta, existe muita incerteza e instabilidade, os preços pagos aos produtores são baixos, não existe uma repartição equilibrada ao longo da cadeia alimentar, temos a pressão da inflação, a China está longe da preocupação com o clima e acumula quase todos os fatores de produção para preparar a sua autossuficiência.

Ao mesmo tempo, a União Europeia cerra fileiras num combate às alterações climáticas que não está disposta a financiar convenientemente, nem exige as mesmas regras aos seus competidores no mercado, desde logo aos produtos que importa, o que cria, naturalmente, sérias distorções de concorrência, comprometendo o nosso futuro coletivo.

A poucos dias das eleições legislativas em Portugal, pensamos que os partidos políticos devem refletir, no que respeita ao setor agropecuário, se querem olhar para os factos e construir as suas narrativas a partir deles ou se querem construir a narrativa da doce ilusão de que para combater as alterações climáticas basta apontar as armas a um setor, dizimá-lo e o problema fica resolvido.

A ilusão pode ser doce, mas, no final, podemos ter o amargo de boca. De um País mais vulnerável, dependente, desertificado e empobrecido.