Nunca será demais enaltecer a forma como, em Portugal e noutros países europeus (sobretudo, na Polónia), têm sido acolhidas milhões de pessoas refugiadas da guerra na Ucrânia. A propósito desta guerra, tem-se evidenciado a ambivalência da natureza humana, o que de pior e de melhor são capazes os seres humanos. Vemos bombardeamentos de maternidades e de teatros cheios de crianças e uma cidade deliberadamente destruída e com os seus habitantes intencionalmente privados de alimentos e água canalizada. A guerra provoca a deslocação de milhões de refugiados. Ao mesmo tempo, esse êxodo sem paralelo nos tempos mais próximos suscita uma espontânea mobilização solidária que surpreende e nos deixa maravilhados.

Há quem se desloque por milhares de quilómetros para resgatar pessoas que não conhece, apenas porque sente como seu o sofrimento dessas pessoas. Não o faz porque pretenda receber algo em troca (nem sequer um agradecimento), nem porque a isso alguém o tenha obrigado: E assim também quem abre as portas da sua casa para acolher esses refugiados e quem se oferece como voluntário para todo o tipo de ajudas (desde oferta de bens a lições de português ou jogos e passeios com crianças). A sociedade civil e as autoridades políticas locais e centrais cooperam num esforço de acolhimento sem reservas e sem medo de que a tarefa possa vir a revelar-se superior às forças disponíveis. Vemos pessoas de muitas e diferentes convicções empenhadas nesta mobilização solidária, que representa uma forma de doação livre, autêntica e desinteressada. Não é verdade que as pessoas só se mobilizem em ações que as beneficiem individualmente, nem que se empenhem em prol do bem comum apenas quando a tal são obrigadas.

Para esta mobilização solidária contribui a emoção provocada pelas imagens de destruição e morte associadas a esta guerra que diariamente nos chegam pela televisão. É importante salientar, porém, que tal mobilização não pode depender de emoções passageiras e não poderá esmorecer mesmo quando os problemas e dificuldades se avolumarem e já não forem imagens dessas a abrir os noticiários.

Também por isso mesmo, esta extraordinária mobilização não pode levar-nos a esquecer outros refugiados, presentes no nosso país e noutros países mais distantes. Deles não nos chegam imagens e notícias como as que nos chegam da Ucrânia, mas a tragédia que vivem não é menor.

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Uma das tragédias que importa não esquecer é a dos refugiados que estão na região de Cabo Delgado, no norte de Moçambique. A distância física que deles nos separa é maior e, sobretudo, deles não nos chegam emocionantes imagens como as que nos chegam da Ucrânia.

Apesar da intervenção armada internacional que pretende pôr termo aos ataques terroristas que forçam essas pessoas a deixar as suas casas e terras, o número de refugiados não deixa de aumentar. De acordo com uma estimativa recente da Organização Internacional das Migrações, esse número cresceu 7% nos três meses anteriores ao mês de fevereiro e atingiu então cerca 784.000, sendo que metade serão crianças. Um número que, relativamente à população total da região, pode ser equiparado ao dos refugiados ucranianos.

Também no acolhimento desses refugiados (muitos deles em famílias) se revelam notáveis gestos de solidariedade humana. Mas as dificuldades com que se deparam essas famílias de acolhimento, por um lado, e as condições físicas (sob certos aspetos, infra-humanas) dos campos onde um grande número permanece desde há muitos meses, por outro lado, são bem mais gravosas do que as dos refugiados ucranianos.

De Cabo Delgado não nos chegam imagens televisivas de destruição e morte como as que nos chegam da Ucrânia. Mas são irreproduzíveis os relatos de testemunhas das mais hediondas atrocidades praticadas durante os ataques de que fogem os refugiados dessa região moçambicana.

A ajuda que pode ser prestada aos refugiados de Cabo Delgado, da parte da sociedade civil e dos governos, será diferente da que vem sendo prestada aos refugiados da Ucrânia. Mas o seu drama deveria ser sentido como nosso, exatamente como está a ser sentido como nosso o drama dos refugiados ucranianos. Para além da agenda mediática e das suas tendências habituais, esse drama não pode ser esquecido.