“É uma democracia que funciona. É uma democracia que funciona.” — repetia Marcelo Rebelo de Sousa à jornalista que o interrogava sobre as crises políticas que o país vive. O mantra da democracia a funcionar sucede ao já obviamente caduco e ultrapassado pela vertigem dos acontecimentos do “À justiça o que é da justiça. À política o que é da política” que nos trouxe a este Janeiro de 2024. Um e outro procuram apenas tirar o foco da responsabilidade dos protagonistas e transferir para nós a responsabilidade e a culpa: ou porque estamos a discutir na política o que é da justiça (ou vice-versa) ou porque não percebemos que isto é uma democracia a funcionar. Mas isto não é a democracia a funcionar.
Enquanto escrevo esta crónica, Portugal tem um primeiro-ministro demissionário a ser investigado pelo Supremo Tribunal de Justiça e vários membros do seu governo/equipa também a serem investigados. O agora demissionário presidente do governo regional da Madeira foi constituído arguido. O também demissionário presidente da câmara do Funchal está detido para interrogatório. O Presidente da República não consegue dar explicações convincentes sobre o uso do seu nome e influência no chamado caso das gémeas. O líder da oposição é objecto de um inquérito sobre os benefícios fiscais atribuídos à sua casa em Espinho. Um antigo primeiro-ministro socialista está acusado de 22 crimes três dos quais de corrupção, 13 de branqueamento de capitais e seis de fraude fiscal sem que o PS tenha até agora reflectido sobre esse período recente da sua e da nossa história.
É isto uma democracia a funcionar? Não, isto não é a democracia a funcionar. É sim um modo perigoso de funcionar na democracia. E é esse modo que temos de discutir, criticar e abordar porque a alternativa é aquilo que está a acontecer: a justiça ficou com o que era da política, a política ficou sem nada e o país imerso num manto de sordidez, decadência e bruteza, vive de sobressalto em sobressalto, viciado numa escala crescente de indignação em que o inimaginável que acontece hoje banaliza o que na véspera era impensável.
A emergência de que não se fala: a violência nas escolas. “Aluno de 11 anos sodomizado por oito colegas em escola de Vimioso na presença de uma funcionária” – A cada linha das notícias sobre este caso surge mais uma questão. A primeira e óbvia: porque não interveio a funcionária? Mas há mais: como conseguem oito jovens com idades entre os 13 e os 16 anos agredir desta forma um colega (e irmão de um dos agressores) sem que ninguém mais, além da funcionária que “nada fez”, perceba que algo de anormal está a ter lugar? Os outros funcionários e professores da escola não deram por nada? Note-se que tudo isto terá acontecido pelas 12h 30 hora em geral movimentada em qualquer escola. Mas não acabam aqui os factos a exigirem esclarecimento: o presidente da Junta de Freguesia de Vimioso, José Manuel Alves Ventura, que tem tido um papel muito mais activo que os responsáveis do agrupamento escolar na denúncia deste caso alerta para “um clima de terror e de encobrimento” que, segundo ele, se vive no Agrupamento de Escolas de Vimioso, relatando mesmo vários casos de violência entre alunos, entre alunos e funcionários. Algo de francamente anormal está a acontecer neste agrupamento escolar.
A violência nas escolas deixou de ser assunto o que não quer dizer que tenha deixado de existir, antes pelo contrário. Mas como acontece quando a ideologia pretende determinar a realidade os números foram sendo trabalhados e apagados para que os resultados fossem conformes aos amanhãs cantados pela equipa do ministério da Educação: em Dezembro de 2023, um estudo revelava que o número de ocorrências em ambiente escolar comunicado às forças de segurança é 48% superior aos casos que depois surgem contabilizados nos relatórios oficiais.
Mas nem a brutalidade do acontecido na escola de Vimioso foi suficiente para que se quebrasse o muro de silêncio que se tem levantado em torno do que está a acontecer nas escolas: dos resultados à violência. Antes de começar o coro de críticas à funcionária que “nada fez” quero recordar que essa funcionária e os demais que as 12h 30 m não viram nem ouviram nada de estranho naquela escola agem como toda a sociedade portuguesa que tanto se tem esforçado por não ver nem ouvir o que de estranho lhes chega das escolas portuguesas.
PS. Continuam a aguardar-se explicações sobre a morte de uma aluna na Escola Secundária de Seia após ter chocado com uma porta de vidro. Os diferentes vidros que se podem usar nas escolas está especificado e devidamente regulamentado. Logo não é verdade que como o ministro João Costa defendeu se trate “de um acidente que poderia ter acontecido, infelizmente, em qualquer escola ou em qualquer lugar onde haja vidro.”