“Sou só um passageiro! É o Estado de Direito a funcionar”— respondia o então ainda ministro da Administração Interna aos jornalistas que o confrontavam com o despacho do Ministério Público de Évora que acusa o seu motorista de homicídio por negligência do trabalhador Nuno Santos. Segundo este despacho o carro em que viajava Eduardo Cabrita seguia a 163 quilómetros por hora no momento do acidente. “Tinha noção da velocidade, 166 km?” —  perguntava uma jornalista (a velocidade seria depois corrigida para 163 km). É então que Eduardo Cabrita responde “Sou só um passageiro!” para em seguida acrescentar o mantra que proferia desde o início das declarações: “É o Estado de Direito a funcionar”.

Sejamos justos: mesmo aqueles que, como é o meu caso, abominavam o tom de voz e a empafia de Eduardo Cabrita, têm a agradecer-lhe o serviço que prestou  ao repetir aquele “é o Estado de Direito a funcionar”, pois de imediato se percebe que “Estado de Direito a funcionar” na versão socialista (e não só) dos termos é o “Estado em que os responsáveis políticos arranjam sempre um argumento na área do Direito para não assumirem as suas responsabilidades políticas”.

Nos demais automóveis da comitiva de Eduardo Cabrita ninguém sabe a que velocidade viajavam. Esta estranha forma de não saber nada que implique qualquer responsabilidade também deve ser “o Estado de Direito a funcionar”.

Já o primeiro-ministro defende que o ministro respeitou o tempo da Justiça o que não deixa de ser mais uma espantosa manifestação do tal “Estado de Direito a funcionar” pois, segundo este formidável raciocínio, se o ministro tivesse apresentado a sua demissão, aí sim estaria a interferir no inquérito. Pelo contrário, a fazer fé no raciocínio do primeiro-ministro, Eduardo Cabrita, ao manter-se no cargo (e aproveitar-se dele para fazer sair informação errada sobre o acidente que vitimou Nuno Santos, por exemplo, sobre a falta de sinalização no local do acidente), não interferiu no inquérito. Se dúvidas existissem, estamos perante uma arrasadora prova do modo de funcionamento do “Estado de Direito a funcionar”.

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Perante este funcionamento do “Estado de Direito a funcionar”, que em tudo parece contrário ao que acreditávamos ser o funcionamento de um Estado de Direito, só nos resta lastimar que ninguém, a não ser os beneficiados por tal funcionamento, perceba o funcionamento deste “Estado de Direito a funcionar”. Aos demais ele assemelha-se muito mais a um Estado de semi-impunidade do que a um Estado de Direito.

O “Estado de Direito a funcionar” tornou-se uma espécie de filme em sessões contínuas dos governos socialistas em Portugal desde José Sócrates. O guião parte sempre da mesma premissa: os actos dos protagonistas principais são sempre justificados com expressões como “Estado de Direito a funcionar”, “à Justiça o que é da Justiça”, “vamos aguardar pelo tempo da Justiça”. Ora quando se julgava que os anos de Sócrates no poder tinham ensinado alguma coisa sobre a falácia subjacente à invocação do “Estado de Direito a funcionar” por parte de governantes que não querem assumir as responsabilidades políticas dos seus actos, eis que chega Eduardo Cabrita! (A este filme de mau enredo mas enorme eficácia nem sequer falta a recorrência das personagens secundárias, no caso os motoristas, as tais a quem o funcionamento do “Estado de Direito a funcionar” chega primeiro.)

Porque é que o “Estado de Direito a funcionar”, enquanto técnica de legitimação da desresponsabilização política, é muito mais frequente nos governos socialistas? Em primeiro lugar porque o escrutínio aos governos de esquerda é menor e em segundo porque os eleitores comportam-se cada vez mais como os  leitores dos romances ou o público das séries: por mais inverosímeis que sejam as acções ou as personagens, aceitam-se que são verdadeiras para que o enredo faça sentido. Ora a suspensão da descrença, que outrora se aplicava apenas à ficção, tornou-se crucial na política. Todos sabíamos que  era impossível que o carro em que o ministro Cabrita viajava não fosse em excesso de velocidade, mas o governo fazia de conta que esperava que  o “Estado de Direito a funcionar” elucidasse o assunto. Agora Eduardo Cabrita invoca o “Estado de Direito a funcionar” para se dizer apenas um passageiro mais naquele carro. Talvez o Direito lhe dê razão. Mas o condutor só seguia àquela velocidade porque o ministro deixava, ou não?

O “Estado de Direito a funcionar” tornou-se em Portugal sinónimo de desresponsabilização. A banalização da ideia de que enquanto não há uma acusação não há responsabilidade é um dos erros mais graves do nosso tempo. Não por acaso vivemos num quotidiano cada vez mais criminalizado enquanto actos que sabemos errados não sofrem qualquer censura porque não foram considerados crimes. Seja na política, na vida de cada um, nas empresas ou nas escolas, o certo e o errado não podem ser definidos por despachos do Ministério do Público. E não podemos, nós e quem nos governa, permitir que o Estado se substitua à consciência.

PS. É sempre assim: primeiro acha-se que é uma anedota. Depois constata-se que afinal é verdade: alguém registou o capote alentejano. O caso já de si seria bizarro mas eis que agora as pessoas que sempre fizeram capotes alentejanos estão a ser notificadas por violação dos direitos exclusivos do autor do registo. Não sei se estamos perante uma tirania dos direitos ou um manicómio de obrigações, mas há nisto uma espécie de desconcerto do mundo.