É cada vez mais fácil ficarmos deprimidos ou, no mínimo, desanimados e depressivos. Basta acompanhar diariamente as manchetes sobre as estatísticas covid que, ainda por cima, apagam ou desvalorizam a evolução de outras doenças; basta estar atento aos acidentes, fraudes, corrupção e crimes; basta ler preferencialmente certas notícias e ouvir certos políticos ou ver sistematicamente a abertura dos telejornais; basta seguir os links que os mais compulsivos nas redes sociais fazem questão de reencaminhar de forma torrencial, mesmo sem se importarem com o facto de poderem estar a amplificar fake news.
Se juntarmos a tudo isto, que já é tanto, todas as outras doenças crónicas, graves, progressivas e terminais que passaram para outro plano no sistema nacional de saúde, mais a incerteza sobre o futuro, as incógnitas profissionais, a quebra ou falta de fontes de rendimento, o desemprego que para muitos se prevê que seja de longa duração, a dificuldade em marcar consultas e tratamentos para as ditas doenças que deixaram de ser prioritárias e ainda a impossibilidade de visitar avós e familiares em lares e hospitais, mas também a interdição de os acompanhar no auge da sua vulnerabilidade ou até no seu derradeiro tempo de vida, percebemos que estamos todos no fio.
Como se tudo isto não chegasse para nos derrotar, somamos ainda o distanciamento social com a ‘natural’ falta de abraços, mais a proibição de participar em festas de casamento e batizados, para não falar da tremenda privação em que passaram a ser feitos os enterros e as últimas despedidas àqueles que mais amamos. Até aqui a esmagadora maioria das pessoas em luto tinha, pelo menos, a consolação da proximidade dos amigos e familiares que se faziam presentes nos momentos mais dolorosos, mas agora tudo acontece de forma estranha, desoladora, quase bizarra.
Fica tanto por dizer. E tantos por abraçar.
Last but not least, temos as máscaras. Imperativas, mandatórias, servem para nos protegermos uns dos outros e não há volta a dar. Ou haverá?
Quase um ano depois das primeiras notícias sobre o coronavírus e sete meses depois do grande confinamento, as máscaras mais a lavagem e desinfeção das mãos, dos alimentos, objetos e superfícies, são o atual kit de sobrevivência da espécie humana. Graças ao ritual de lavagem e desinfeção repetido vezes sem conta, mas também ao uso obrigatório de máscaras em lugares fechados, a pandemia alastra a um ritmo menor do que alastraria sem este kit.
Acontece que passado todo este tempo as pessoas andam naturalmente mais desanimadas e desconcertadas. Não apenas por muitas já estarem privadas de bens essenciais, mas porque também nos ressentimos da opacidade das máscaras. As caras, as fisionomias, os traços de originalidade, os sorrisos e até a subtileza de um trejeito de boca, ou de uma expressão mais eloquente de um estado de espírito, desapareceram da nossa vista. Tornaram-se invisíveis.
Podemos sempre argumentar que os olhos também riem e sorriem, coisa que é inteiramente verdade, mas não chega para conhecer uma pessoa. Nem para nos darmos, nós próprios, a conhecer. Há olhos impenetráveis, tristes ou pouco expressivos, sem que o sujeito a quem pertencem tenha culpa. Simplesmente foram desenhados assim.
De um dia para o outro deixámos de ver caras inteiras, expressões faciais completas. Passámos a cruzar-nos com humanos mascarados e ficámos privados da sua (nossa!) expressão natural. Tudo estaria muito certo se as regras sanitárias fossem as únicas regras que nos fazem viver. O problema é que não são. Passámos a ter dificuldade em reconhecer os que já conhecíamos, mas dos outros sabemos apenas como é meia cara, como se fosse possível ou até desejável conhecer apenas meia pessoa.
Rir e sorrir são formas de comunicação elementares. Aliás, o impacto que tem a nossa linguagem não verbal é brutal, pois representa 90% da comunicação interpessoal. E se assim é, isto quer dizer que passámos a viver privados de uma percentagem incrível da nossa capacidade de comunicação. Passámos a relacionar-nos como se tivéssemos sido amputados de membros e órgãos vitais.
Se, para uns, esta privação apenas provoca algum desconforto, para outros é um motor de ansiedade porque sentem que perderam completamente as suas referências. Falo da legião de pessoas (não apenas de velhinhos e velhinhas, note-se!) que ouvem mal e, de repente, passaram a viver como se fossem completamente surdos, alheados de básicos essenciais, mas também falo de uma quantidade incalculável de pessoas para quem as máscaras opacas são barreiras intransponíveis.
Crianças e jovens, adultos mais ou menos novos, todos sentimos que a distância não é apenas a que ficou estabelecida em metros. A pior distância é, porventura, esta opacidade, esta súbita falta de transparência das máscaras que escondem a cara, que não deixam ver rostos, que não permitem ler expressões e ficar a conhecer o outro.
Uma vez aqui chegada, gostava de abrir um parêntesis para incluir aquilo que penso ser uma tremenda dificuldade acrescida para todos os tipos de autoridade, em especial os polícias e agentes que lidam com criminosos e delinquentes, pois para estes últimos as máscaras passaram a ser um superpoder. Usam máscara, assaltam e roubam, ameaçam e agridem sem deixar memória das suas fisionomias e traços particulares. Ninguém pode descrever um assaltante de máscara e não há nenhum meliante que não saiba isso. Aparentemente eles ficaram em ‘vantagem competitiva’ e nós em maior desvantagem e desproteção. E fecho o parêntesis.
Volto ao cenário quotidiano, mais comum, para sublinhar que muitas crianças e jovens, nas escolas, dentro das salas de aulas, estão a começar a dar sinais de solidão, ansiedade, angústia e depressão. De asfixia, também, mas isso é outro capítulo, pois depende das opções relativamente ao tipo de máscaras que usam e da quantidade de vezes que as lavam.
Passados todos estes meses ainda há poucas máscaras transparentes no mercado e as que há ou não estão certificadas, ou não servem o propósito sanitário a que se destinam. As viseiras são incómodas e estragam-se facilmente porque ficam riscadas ou ganham vincos. Muitas delas nem sequer se ajustam de forma a prevenir o contágio.
Um pouco por todo o mundo testam-se novas máscaras, mais as opacas que as transparentes, e percebemos que há start-ups a tentar reunir capital para produzir massivamente máscaras que permitam voltar a ver as caras das pessoas. Eu própria estou inscrita, numa interminável lista de espera, para obter aquelas que poderão vir a ser as mais seguras e duradouras, mas não sei quando chegarão realmente ao mercado.
O fundraising e a angariação de seed capital para outras empresas que querem testar e produzir este tipo de máscaras também está em curso, sem que ninguém as possa obter para já. Felizmente existem os portugueses, campeões olímpicos da adaptação e flexibilidade em tempos de crise, e a prova disto é que as primeiras máscaras transparentes que já foram lançadas no mercado, e estão disponíveis para serem encomendadas online, foram desenhadas e produzidas por uma empresa de Leiria.
Uso estas máscaras para dar aulas e para o atendimento aos alunos, mas também para permanecer em espaços fechados como igrejas, museus e restaurantes. Quando circulo no campus da universidade sou obrigada a usar as máscaras opacas porque estas transparentes, portuguesas, ainda não foram certificadas, mas quando fico no meu posto, seguramente a mais de 3m dos alunos (eles sentados e eu de pé), só uso a máscara transparente, que ainda por cima é ultra higiénica por se poder lavar à torneira mil vezes por dia.
E por usar esta máscara e conhecer outros professores que também resolveram a questão da visibilidade, sinto o impacto imediato que tem nos estudantes.
Num tempo em que a esmagadora maioria dos professores tenta manter-se próximo e ligado aos seus alunos, inventando formas criativas para os motivar e até resgatar, não posso deixar de partilhar a estratégia da transparência. Todos vemos cada vez mais jovens em burnout, em colapso físico, mental e emocional, numa solidão crescente e numa aflição mascarada e é por ser cada vez mais fácil todos ficarmos deprimidos que (n)os percebemos melhor e temos que encontrar meios de (n)os ajudarmos a não afundar.