Um dos benefícios de ser um indivíduo de meia-idade – bem vistas as coisas, “o” benefício – é poder usar, já com alguma propriedade, a expressão “Eu ainda sou do tempo”. Vou aproveitar, pois, para o começar a fazer amiúde, principiando pela crónica de hoje. Até porque, ao ritmo a que progride a tecnologia médica, pode dar-se o caso de, quando eu chegar aos 70 anos, a esperança média de vida estar para aí nos 210. O que fará de mim, com essa vetusta idade, um jovem adulto. Ou mesmo um late teen. Tendo em conta que, por estes dias, há quem preconize que a adolescência vai até aos 25.

Todo este intróito para dizer que eu ainda sou do tempo em que “coragem” queria dizer “firmeza de ânimo ante o perigo, os reveses, os sofrimentos.” E, pelos vistos, o dicionário Priberam também ainda é do meu tempo. Pelo menos até algum progressista lhe deitar a mão. Ora, utilizar a palavra “coragem”, como tudo o que é meio de comunicação social fez, para definir a atitude da ginasta Simone Biles ao desistir de várias competições olímpicas não faz nenhum sentido. Pode dizer-se o que se quiser sobre a decisão de Biles, mas que provou a sua “coragem” não é uma delas. Na verdade, e como a consulta do dicionário esclarece, o que a atleta demonstrou foi o exacto oposto de “coragem”. E eu ainda sou do tempo em que uma palavra não podia significar uma coisa e o seu contrário. Porque, nessas circunstâncias, uma palavra pode significar qualquer coisa. O que é o mesmo que dizer que não significa nada. E assim fica difícil entendermo-nos.

A propósito de Jogos Olímpicos, eu ainda sou do tempo em que as mulheres competiam contra mulheres e os homens competiam contra homens. Tudo isso mudou nestes Jogos de Tóquio, com a participação de Laurel Hubbard no halterofilismo. Hubbard é, em termos biológicos, um homem, mas a partir de 2013 passou a identificar-se como mulher. O que, nos dias que correm, é suficiente para participar numa prova desportiva feminina. Eu ainda sou do tempo em que as nossas percepções sobre nós próprios corriam o risco de esbarrar numa coisa chamada realidade. Lamentavelmente, diga-se. Sim, porque sempre que eu dizia aos meus colegas de escola que era a Joana d’Arc, eles recusavam seguir-me acriticamente, fingindo ignorar estarem na presença de uma santa canonizada pela Igreja Católica. E mesmo apesar de eu furtar algumas peças do roupeiro da minha mãe, que compunham, muito credivelmente, a personagem. Tivesse isto acontecido ontem, e não nos paleolíticos anos 80 do século XX, e ai dos preconceituosos que se atrevessem a questionar a minha identidade de feroz guerreira gaulesa.

Eu ainda sou do tempo em que, por exemplo, perante uma adolescente anoréxica a teimar que era gorda, a reacção normal era fazê-la compreender que a sua percepção sobre si própria estava completamente distorcida. O facto dela se sentir gorda não significava que fosse gorda. Significava, antes, que precisava de ajuda psiquiátrica para resolver essa dissonância entre o que o seu cérebro percepcionava e a, lá está, realidade. Mas se o jogo agora é, não meramente respeitar, mas estimular e, sobretudo, celebrar toda e qualquer afirmação que façamos sobre nós próprios, por mais absurda e perigosa que seja, então talvez a dica ideal, nos tempos que vivemos, para uma adolescente anoréxica seja: “Gorda? Gorda é favor, pá. Tu estás é uma lontra balofa repugnante. Ouve lá, já experimentaste o jejum intermitente? Devias experimentar. Mas, no teu caso, sem a parte da intermitência.”

Finalmente, eu ainda sou do tempo em que os homens faziam um esforço para não chorarem. Ou, pelo menos, para reservarem uma ou outra lágrima para momentos realmente merecedores. Como um qualquer episódio daquele programa em que constroem casas novas para famílias necessitadas e em que, no fim, o apresentador diz “Driver, move that bus”, revelando a nova habitação. Bom, tudo isto para dizer ao(s) meu(s) leitor(es) que, se está(ão) a ler esta crónica num sítio público, talvez seja altura de procurar(em) um local resguardado. Já encontrou(aram)? Ninguém o(vos) consegue ver? Então, era só para avisar que para a semana estou de férias, pelo que não haverá crónica. Eu sei que é difícil encarar isto. Eu sei. Mas recomponha-se(am-se). Pare(m) lá de chorar. A vida também é feita destes momentos difíceis. E eles ajudam-nos a crescer como homens. Vá, até dia 18.

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