Na sua recente passagem por Lisboa, em entrevista à revista Visão (edição impressa), Catherine L’Ecuyer afirmou sem reservas que “foi um erro dar tecnologia às crianças em idades precoces”, recordando que já em 2014, no seu livro Educar na Curiosidade, alertava para os riscos de uma adoção indiscriminada e precoce da tecnologia na educação, por tal não ter sido nem testado nem validado nas consequências que tal poderia ter junto dos mais novos.

Os últimos anos têm sido de um parolo e preguiçoso deslumbramento tecnológico. Assombrados pelas capacidades das novas ferramentas digitais, temos vindo a deixar que muito rapidamente as tecnologias revolucionem a forma como se ensina e aprende, alinhando em utopias educacionais não validadas e que muitas vezes mais não são do que fórmulas sofisticadas de marketing. E se muitas das inovações são impressionantes e merecem ser valorizadas – não é possível fugir à mudança – o que hoje se verifica é que muitas tecnologias foram integradas nas escolas sem um verdadeiro teste do seu valor – e consequências nefastas – para as crianças. Como bem refere Catherine L’Ecuyer, “estas ferramentas fazem sentido, do ponto de vista educativo? E têm, ou não, efeitos colaterais? (…) Acontece que os estudos sérios e com rigor são dispendiosos e demorados, e só na última década foi possível estabelecer uma correlação entre o consumo de redes sociais e da internet e o impacto que têm na atenção e na saúde mental”.

Vários estudos que começam agora, paulatinamente, a ser divulgados, evidenciam uma ligação preocupante entre a introdução intensiva da tecnologia e o declínio no desempenho académico. No Expresso é-nos dito que nos últimos anos se verifica uma assustadora regressão nas competências de leitura e escrita ligada ao uso excessivo de ecrãs. A Suécia, em face dos resultados do último “Estudo Internacional sobre o Progresso da Literacia em Leitura” (“PIRLS”), decidiu colocar um travão na utilização dos ecrãs enquanto ferramenta pedagógica e repensar a sua abordagem à tecnologia nas salas de aula. Tal ocorre numa altura em que são por demais visíveis inúmeros efeitos colaterais da excessiva exposição das crianças a equipamentos tecnológicos, como smartphones, tablets, e consolas de jogos, bem como das redes sociais que se suportam nestes equipamentos, a saber: ansiedade, redução do autocontrolo, diminuição de recursos vocabulares, e falta de capacidade crítica para compreender o que é ou não relevante na vida real.

Acresce que a tecnologia, por mais avançada que seja, não substitui a profundidade do pensamento humano. A aprendizagem digital até incentiva a memorização rápida e permite uma recolha superficial de informações, mas deixa pouco espaço para o desenvolvimento da empatia, do discernimento e da introspeção.

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Neste particular, vale a pena ler com muita atenção um estudo da Harvard Business School, divulgado a semana passada, onde um conjunto vasto de investigadores analisou o impacto que ferramentas de IA, já hoje disponíveis, podem ter no trabalho e na produtividade (o estudo pode ser encontrado, aqui; um resumo do estudo pode ser encontrado, aqui). Para tal acompanharam, durante vários meses, a adoção de ferramentas de IA na consultora BCG. As conclusões a que o estudo conduziu são muito interessantes: assim, os consultores que usaram IA concluíram em média 12,2% mais tarefas, 25,1% mais rapidamente, e produziram resultados com uma qualidade 40% maior, do que aqueles que continuaram a utilizar os métodos de trabalho sem IA. Mas não apenas: aqueles que, antes de usarem IA, tinham pior desempenho, foram os que conseguiram ter uma maior curva de evolução, apresentando os maiores ganhos de eficiência.

O estudo identificou, porém, que foram mais propensas a cometer erros as pessoas que usaram IA em tarefas em relação às quais não tinham um forte nível de especialização, confiando nos resultados apresentados pelas ferramentas, quando não deveriam. Verificou-se que em inúmeras situações os consultores tiveram dificuldade em discernir se os resultados eram ou não confiáveis e válidos, criando uma “fronteira irregular” (“jagged frontier”, na versão original) no aproveitamento das capacidades (tecnológicas e humanas). Assim, um grupo de consultores navegaram bem nessa fronteira, combinando de forma virtuosa os resultados mais válidos da IA com o seu trabalho e discernimento humano, construindo fórmulas de produção que combinavam os pontos fortes de ambos. Já os consultores dotados de menores capacidades críticas ou conhecimento contextual/de especialidade, tiveram uma maior dificuldade em apresentar resultados consistentes, sendo muitas vezes induzidos em erro.

O estudo permite concluir que, pelo menos nos próximos anos, as ferramentas e as fórmulas suportadas em IA generativa, em inúmeras áreas, por mais avançadas que sejam, dificilmente serão capazes de realizar todas as tarefas com o mesmo nível de eficiência, apresentando resultados assimétricos (por vezes poderosos; outras vezes, falhando miseravelmente). Tal ocorrerá, necessariamente, com mais acuidade, nas áreas onde o raciocínio seja mais complexo (ou não binário), onde o crivo humano, crítico, permanecerá essencial.

Uma leitura atenta do estudo permite concluir, sem margem para dúvidas, que o uso de IA amplia significativamente a performance humana, algo que é particularmente interessante se pensarmos que os que obtiveram mais ganhos foram precisamente os que, sem recurso a IA, apresentavam antes piores resultados. Mas o estudo também demonstra que a capacidade de identificar, compreender e utilizar a IA eficazmente está intimamente ligada à literacia digital e à existência de discernimento e capacidade crítica. Os consultores que souberam quando e como usar IA foram os que obtiveram os melhores resultados. Da mesma forma, aqueles que foram capazes de reconhecer as limitações do modelo e aplicar o seu próprio julgamento humano quando necessário, emergiram como os vencedores na hora de apresentar resultados; por contraponto aos que, confiando acriticamente nos resultados mais pobres da IA, foram encaminhados para soluções enganosas.

Numa crónica que aqui escrevi no Observador, em Junho deste ano, enfatizei a importância das literacias como melhor fórmula para preparar as crianças e jovens para as revoluções em curso, patrocinadas pela tecnologia. Chamei-lhe “humanismo como resistência” por entender que, ao longo dos séculos, os livros mediaram melhor do que qualquer outra tecnologia a relação das pessoas com o conhecimento e funcionaram como a ferramenta mais adequada para fomentar a capacidade crítica, a reflexão, a autonomia individual, e o sentido de liberdade. No meu entender, nada prepara melhor uma pessoa para os desafios do futuro do que ler.

Nos últimos anos assistimos à afirmação da ideia de que é fundamental trazer para a sala de aula uma componente lúdica, fazendo muitas vezes da aprendizagem um jogo. Sendo eu próprio um apologista do “edutainment”, ou seja, da tentativa de incorporar camadas de entretenimento nos conteúdos educativos, tal não deve ser confundido com facilitismo ou diminuição da exigência. Fomentar a leitura está nos antípodas de uma educação suportada em estímulos exteriores. Ler não é uma atividade fácil ou intuitiva. Implica aprender a ler, mergulhar em cada palavra, em cada ideia, dando tempo ao tempo para viajar até outros espaços e cenários e voltar de alma cheia à realidade, fechando o espaço de concentração de um mundo que cada vez menos aceita que isolemos a nossa atenção, centrados apenas em nós próprios e na relação com aquilo que aquelas páginas possam inspirar. Acontece que, sendo atividades exigentes, ler e pensar continuam a ser a melhor forma de acompanhar e compreender a mudança. Em sentido inverso, o mantra da tecnologia – de que é possível ensinar, entretendo e diminuindo o sacrifício e a agrura associada à aquisição do conhecimento – está por demonstrar e, como se começa a ver, tem até efeitos muito perniciosos.

Catherine L’Ecuyer, na sua entrevista, alerta para os perigos de um processo de aprendizagem onde predominam os estímulos exteriores. Defendendo uma abordagem inversa, inspirada nos filósofos gregos, onde a aprendizagem depende do “desejo de conhecer” e do “espanto” que tal nos causa. Ao ler a entrevista, lembrei-me de Leo Strauss que, desde a década de 40 do século passado, mediatizou a importância do ensino dos clássicos como fórmula para a excelência. Para Strauss, o ensino dos grandes textos da tradição ocidental, fonte inestimável de sabedoria, é essencial para compreender as questões fundamentais da vida humana. Há várias décadas que abordagens inspiradas na filosofia clássico-realista a que Catherine L’Ecuyer se refere são aplicadas em várias escolas de elite, com excelentes resultados. Uma leitura atualista da visão de Strauss (mais alargada no leque de autores a estudar) faz hoje mais sentido do que nunca: não sabemos onde a revolução em curso nos poderá levar, mas seguramente as gerações futuras estarão mais defendidas se soubermos concentrar a sua educação na formação de um pensamento crítico fundado no conhecimento intemporal, aquele que está validado porque resistiu à erosão do tempo e que por isso faz parte da memória da Humanidade.