O eventual leitor deste artigo terá sobre o autor pelo menos uma vantagem decisiva: quando este texto for publicado já serão conhecidos os resultados oficiais das eleições europeias de ontem — o que não é o caso na altura em que este artigo está a ser escrito. Ainda assim, arrisco-me a abordar o tema das eleições europeias — que têm a especificidade adicional de serem eleições “de protesto”, sem directo impacto governativo nem no plano nacional nem no plano europeu.
Um ponto de partida possível será o discurso de despedida de Theresa May, primeira-ministra britânica, na passada sexta-feira. A sra. May será sem dúvida a principal responsável pelo descalabro eleitoral que tudo indica terá penalizado duramente o seu Partido Conservador nas eleições europeias. Mas proferiu um discurso honroso, a que não faltou a sincera emoção final, quando concluiu expressando a sua “gratidão pela oportunidade de servir o país que amo.”
Outro aspecto que merece apreço foi o seu elogio do espírito de compromisso. Citando Sir Nicholas Winton, que foi um empenhado protector de crianças perseguidas pelo nazismo, Theresa May recordou que ele lhe tinha dito: “nunca se esqueça de que ‘compromisso’ não é uma palavra suja”.
Creio que a sábia recomendação de Sir Nicholas devia ser hoje sobretudo recordada aos líderes da União Europeia em Bruxelas. Estamos a assistir há vários anos a uma espécie de rebelião dos eleitorados nacionais de inúmeros países europeus — uns atrás dos outros, é a expressão adequada neste caso. Essa rebelião exprime-se na fuga de um número crescente de eleitores dos partidos centrais clássicos para partidos até há pouco marginais, nalguns casos até há pouco simplesmente inexistentes.
Venho argumentando repetidamente, desde pelo menos 2012 (num artigo no Journal of Democracy que retomei na mesma revista em 2014 e num livro sobre Portugal, a Europa e o Atlântico, com muito amável Prefácio de Manuel Braga da Cruz), que os eleitores não estão a votar nesses partidos sobretudo por eles serem extremistas. Estão a votar nesses partidos porque eles são os únicos que dão voz a uma preocupação crescente dos eleitores: a preocupação com o sentimento nacional e o desconforto com a centralização supra-nacional.
Por que motivo não têm os partidos centrais dado a devida atenção ao sentimento nacional? Basicamente, porque eles têm sido seduzidos por uma ideia que é, pelo menos, peculiar no âmbito das tradições liberais-democráticas: a ideia de planificação central.
O nobre projecto de cooperação entre as nações europeias teve desde o início pelo menos duas interpretações (o que não deve ser visto necessariamente como uma desvantagem). De um lado, existia a ideia de cooperação entre as nações europeias; de outro lado, havia o sonho cartesiano de uma sucessão de passos conduzindo inevitavelmente a um Estado europeu supra e pós-nacional.
Não creio que houvesse necessariamente um problema nessa co-habitação entre diferentes interpretações do projecto europeu. A democracia parlamentar, onde realmente tem existido duradouramente, foi sempre uma co-habitação entre projectos e visões do mundo diferentes, por vezes até teoricamente opostas. O milagre da democracia parlamentar consiste precisamente em permitir a conversação civilizada entre projectos rivais — os quais, por via dessa conversação, vão gradualmente amaciando o seu entusiasmo dogmático, sem por isso terem de perder as suas convicções distintivas.
Por esta razão, o problema da União Europeia não reside, em meu entender, na existência de uma visão planificadora cartesiana. Se essa visão existe com expressão significativa, é desejável que tenha voz na União Europeia e nos corredores de Bruxelas. O grande problema é quando essa visão planificadora cartesiana gera uniformização e deixa de estar em concorrência com uma visão rival — uma visão fundada na prioridade do sentimento nacional e da soberania dos parlamentos nacionais.
Receio ter de repetir que esta uniformização cartesiana está na origem da sucessiva erosão eleitoral dos partidos centrais. A ideia e o slogan de “Mais Europa” tornou-se comum aos partidos centrais, de centro-direita e de centro-esquerda. Fundamentalmente por essa razão, os eleitores que não querem “Mais Europa” deslocam-se para partidos marginais — ou/e para a abstenção. Como venho alertando há vários anos, a uniforme identificação da União Europeia com o plano central de “Mais Europa” arrisca-se seriamente a resultar em “Mais Europa com Menos Europeus”.
É aqui que devemos voltar ao conselho que Sir Nicholas terá dado a Theresa May: “nunca se esqueça de que ‘compromisso’ não é uma palavra suja”. Esta sábia recomendação deve ser hoje recordada aos líderes da União Europeia em Bruxelas. Se estes realmente defendem a União Europeia (e acredito que defendem, ainda que numa versão peculiarmente planificadora) devem escutar a mensagem dos eleitores. Isso não implica abandonarem por completo os sonhos planificadores — o que seria da minha parte uma exigência dogmática de um espécie de “plano anti-planificador”. Mas seguramente exige que aceitem uma humilde atitude de compromisso e moderação relativamente ao desconforto dos eleitores.