1 Gostaria de saudar enfaticamente a Cimeira para a Democracia promovida pelo Presidente americano Joe Biden nos passados dias 9-10 de Dezembro. E, simultaneamente, gostaria de propor algumas possíveis respostas às inúmeras críticas ou/e reservas que foram apresentadas sobre/contra a iniciativa.
2 Entre as dificuldades apresentadas, surgiu a questão de saber quem define o que é a democracia. Esta dificuldade foi apresentada, entre outros, pelas ditaduras russa e chinesa. A resposta, creio, é bastante simples:
Pode naturalmente haver erros na definição dos países que são democracias — a aceitação da possibilidade de erro é fundadora do conceito de democracia. E, do ponto de vista democrático, esse erro pode ser livremente corrigido: basta que os países/regimes que foram excluídos da Cimeira apresentem as razões pelas quais deveriam ter sido incluídos como democracias.
3 A China protestou veemente contra a sua exclusão da Cimeira. Mas, em vez de argumentar que é uma democracia, argumentou que é uma democracia diferente, e mais autêntica, do que a democracia americana e ocidental, fundada no chamado ‘capitalismo’.
Vale a pena recordar que este foi exactamente o argumento apresentado pela ditadura comunista soviética e pela ditadura fascista italiana, bem como pela ditadura nacional-socialista germânica, nos anos 1920/30. Disseram elas que a chamada democracia burguesa, capitalista e parlamentar — simbolizada em primeiro lugar pela monarquia parlamentar britânica — era apenas uma máscara para a opressão do proletariado pelas classes burguesas dominantes.
4 Winston Churchill, que defendeu a democracia liberal quando poucos acreditavam na possibilidade de a preservar, exprimiu inúmeras vezes as características distintivas da democracia liberal. Uma das mais enfáticas encontra-se na “Mensagem ao Povo Italiano”, emitida em Agosto de 1944, na qual apresentou “sete muito simples testes práticos pelos quais a liberdade pode ser reconhecida no mundo moderno”:
“Existe liberdade de expressão de opiniões e de oposição e crítica ao governo que se encontra no poder?
“Os cidadãos têm o direito de destituir um governo que consideram censurável e estão previstos meios constitucionais de manifestarem a sua vontade?
“Existem tribunais que estão ao abrigo de violência por parte do executivo ou de ameaças de violência popular e sem quaisquer ligações com partidos políticos específicos?
“Estes tribunais administram leis abertas e bem estabelecidas que estão associadas na mente humana com princípios gerais de decência e justiça?
“Há jogo leal [‘fair play’] para pobres e para ricos, para os cidadãos comuns e para os detentores de cargos públicos?
“Existe a garantia de que os direitos dos indivíduos, ressalvadas as sua obrigações para com o estado, serão mantidos, afirmados e enaltecidos?
“Está o simples camponês ou operário, que ganha a vida trabalhando e lutando diariamente para sustentar a sua família, livre do receio de que uma qualquer organização política sinistra controlada por um partido único, como a Gestapo, lhe bata à porta e o leve para a prisão ou para ser sujeito a maus-tratos sem um julgamento justo e público?”
5 Churchill repetiria estes ‘sete testes’ num discurso em Bruxelas, em 16 de Novembro de 1945, e nos Estados-Gerais da Holanda, em 9 de Maio de 1946. De certa forma, estes “sete testes” evocam o célebre discurso do Primeiro-Ministro William Pitt (The Elder) na Câmara dos Comuns, em Março de 1763:
“O homem mais pobre pode na sua ‘cottage’ desafiar toda a força da Coroa. A ‘cottage’ pode ser frágil; o seu telhado pode abanar; o vento pode entrar através dele; as tempestades podem entrar, a chuva pode entrar — mas o Rei de Inglaterra não pode entrar; todas as suas forças não se atrevem a atravessar os limites da habitação em ruínas”.
6 Em suma, os países que eventualmente possam ter sido erroneamente excluídos da Cimeira para a Democracia são bem-vindos se quiserem apresentar o seu curriculum liberal- democrático.
7 Outro ponto crucial apresentado contra a Cimeira para a Democracia, de novo pela ditadura chinesa, é que ela contraria o espírito universalista da ONU. Winston Churchill também respondeu a essa questão— na altura colocada pela ditadura comunista soviética.
No célebre discurso em Fulton, Missouri, em 1946, na presença do Presidente Truman, Churchill (então simplesmente líder da Leal Oposição de Sua Majestade ao Governo Trabalhista do Right Honourable Clement Richard Attlee, Prime Minister) denunciou a “Cortina de Ferro” que estava a ser imposta pelo comunismo soviético “desde Stettin no Báltico até Trieste no Adriático “. E defendeu a urgência de uma aliança das democracias contra a ameaça totalitária soviética, citando a ancestral aliança luso-britânica:
“Os britânicos têm uma aliança com Portugal desde 1384, que produziu resultados frutíferos num momento crítico na guerra recente. Este acordo específico [à semelhança da relação especial entre o Reino Unido, os EUA e a British Commonwealth] não colide com o interesse geral de uma organização mundial das nações. Associações especificas entre membros das Nações Unidas, longe de serem prejudiciais, são benéficas e, eu acredito, indispensáveis.”
Post Scriptum e Declaração de Interesse: devo certamente expressar, ainda que com prazer, o meu eventual interesse pessoal no argumento aqui apresentado. Há mais de dez anos, o “Open Day” do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, de que sou director, intitula- se “Cimeira das Democracias”: mais de 300 alunos das escolas secundárias, de Norte a Sul do continente e das Ilhas, participam anualmente numa conferência de dia inteiro em que cada escola representa uma democracia da sua escolha — apenas tem de ser uma democracia e ser capaz de explicar tranquilamente por que motivo deve ser considerada uma democracia. Além disso, devo também testemunhar que a mais recente 29ª edição anual do Estoril Political Forum — que teve lugar no Estoril Palace Hotel a 18-20 de Outubro, com cerca de 700 participantes, sob o Alto Patrocínio do Presidente da República — teve como título “ 80º Aniversário da Carta Atlântica: Estruturando uma Nova Aliança das Democracias”.
Post Scriptum 2: Uma saudação especial à Imprensa Nacional – Casa da Moeda pelo lançamento das Obras de Mário Soares, sob a direcção de José Manuel dos Santos. O primeiro volume será lançado hoje à tarde, segunda-feira 13 de Dezembro, na Fundação Calouste Gulbenkian, com a presença do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República e do Primeiro-Ministro. As democracias devem orgulhar-se do que as distingue e reafirmar sem hesitações os seus padrões de liberdade ordeira sob a lei.