1Quero começar por deixar claro que rejeito discutir o sistema judicial com base em protagonistas. Por uma razão simples: não acredito em homens providenciais nem em claques perfeitamente ridículas sobre o juiz bom ou o juiz mau. As melhores instituições são aquelas que vivem para lá e apesar das pessoas.

É precisamente por isso que vou defender a existência do Tribunal Central de Instrução Criminal. Porquê? Porque os partidos parlamentares podem ter a tentação de querer acabar com este tribunal na ressaca da decisão-bomba do juiz Ivo Rosa e das críticas às decisões díspares tomadas pelos atuais dois magistrados titulares do Ticão. Repito: não vou discutir nem pessoas e muito menos decisões.

Vou argumentar, sim, que extinguir (ou defender a fusão do Ticão com o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa — que é a mesma coisa que extinguir) representará o maior erro que se cometeu nos últimos anos no combate à corrupção. Porque será uma espécie de decisão ad hominem. Ou seja, será tomada contra e em função de pessoas (Ivo Rosa e Carlos Alexandre) e não para defesa de um melhor sistema penal.

2 Em primeiro lugar, é preciso enfatizar que o Tribunal Central de Instrução Criminal foi criado em 1999 no contexto de um edifício jurídico que inclui o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Ou seja, o Ticão só existe para fazer a instrução criminal dos casos investigados pelo DCIAP.

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E que tipo de inquéritos são esses? Correspondem grosso modo a um conjunto de crimes de catálogo (criminalidade económico-financeira, fraude nos fundos europeus, terrorismo, tráfico de pessoas, tráfico de droga, etc.) que, por sua vez, dizem respeito a criminalidade organizada e altamente complexa. Mas, atenção, o DCIAP só pode investigar crimes que tenham ocorrido em diferentes distritos judiciais.

A partir daqui é fácil identificar as vantagens de um tribunal como o Ticão:

  • é um tribunal de competência especializada, visto que acompanha a especialização do DCIAP e está concentrado na criminalidade altamente organizada e complexa. Isto é, os juízes daquele tribunal ganham um know-how específico fundamental para entenderem a matéria de facto bastante específica dos processos investigados pelo DCIAP.
  • é um tribunal de competência territorial alargada. Em termos práticos, tem competência sobre todo o território nacional. O que permite, por um lado, resolver os problemas de conflitos territoriais que sempre existiram entre comarcas quando os crimes são praticados em diferente distritos judiciais. Mas, mais importante, combate o problema da proximidade entre o poder judicial e os diferentes poderes locais que muitas vezes é um obstáculo no combate à corrupção.

Para quem, como eu, defende que o nosso sistema penal só pode ser eficiente se os tribunais acompanharem minimamente a especialização do Ministério Público no combate à corrupção — extinguindo-se um verdadeiro diálogo de surdos que existe nas salas dos tribunais entre procuradores especializados e juízes generalistas —, manda a coerência que defenda o Ticão.

Não só pelo conceito estar correto, com a Associação Sindical de Juízes já defendeu várias vezes, mas essencialmente pelos resultados. Não só os inquéritos e a instrução criminal dos processos despachados pelo Ticão não são conhecido por atrasos — a exceção à regra é a Operação Marquês. Como o tribunal foi peça-chave, por exemplo, na apreensão de bens no valor de milhares de milhões de euros e já ajudou o Estado a recuperar muitas centenas de milhões de euros de impostos em atraso, com aconteceu na Operação Furacão.

3 Obviamente que não posso ignorar o problema atual de o Ticão ter dois juízes que representam a noite e o dia em termos de interpretação legal e de análise de prova material — com tudo o que isso acarreta em termos de desprestígio da justiça.

O problema existe mas é conjuntural — não é estrutural. Ou seja, o obstáculo nada tem a ver com uma matéria estrutural da competência do tribunal ou com a interação do tribunal com o DCIAP ou ainda a forma com o posicionamento do tribunal dentro do poder judicial.

Refira-se, por último, que muitos advogados tentaram inúmeras vezes ‘destruir’ este tribunal, arguindo a inconstitucionalidade do mesmo. Não só nunca conseguiram, como o Tribunal Constitucional confirmou expressamente que o Ticão respeita a lei máxima.

Voltando ao problema conjuntural. A solução é bastante simples e impedirá que a situação de dois juízes com visões antagónicas se repita no futuro: alargar o quadro do Ticão de dois para quatro juízes.

Essa é a solução defendida pela ministra Francisca Van Dunem na Estratégia Nacional Contra a Corrupção e apoiada pela Associação Sindical dos Juízes — e é a que faz mais sentido. Porque preserva todas as qualidades do Ticão e resolve o problema atual.

A outra opção, defendida pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, passa pela fusão do Ticão com o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa — que corresponderá, na prática, a uma extinção do Tribunal Central. Argumenta o conselheiro António Piçarra que o Ticão não tem serviço suficiente para dois juízes — quanto mais para quatro. A solução aqui também é fácil: aumente-se as competências do tribunal para aumentar a quantidade do serviço, até porque vários procuradores do DCIAP estão a desviar os processos para o TIC de Lisboa devido a uma falha na lei.

Veremos se os deputados preferem a opção do Governo ou se vão aproveitar a boleia do conselheiro Piçarra para acabarem com o Ticão.

4 Se alargarmos o quadro de dois para quatro juízes, tal não significa que o problema Ivo Rosa/Carlos Alexandre se resolva porque os juízes podem continuar no Ticão. O que é verdade, devido ao principio da inamovibilidade — uma regra básica do Estado de Direito e da independência do Poder Judicial, como expliquei aqui na semana passada.

É por isso que defendo igualmente que os juízes Ivo Rosa e Carlos Alexandre devem ser os primeiros a ter consciência do problema grave que se coloca à imagem da Justiça quando existe essa dicotomia juiz bom/juiz mau. Logo, devem ser aqueles magistrados judiciais a solicitarem ao Conselho Superior da Magistratura a sua promoção ou transferência para outro tribunal.

Se decidissem sair pelo seu próprio pé, não tenho qualquer dúvida de que Ivo Rosa e Carlos Alexandre estariam a prestar um grande homenagem à Justiça e, acima de tudo, ao Ticão — um tribunal que juraram servir e que está para lá daqueles magistrados.

A ironia de tudo isto é que, em vez de discutirmos novos instrumentos  — como a criação de um tribunal de julgamento que repita as competências do Ticão, como a criação de novas regras para os julgamentos ou os recursos (para os tornar mais céleres) ou até mesmo de um crime de enriquecimento ocultado (que teve um grande empurrão de Marcelo Rebelo de Sousa esta 2.ª feira) — ainda vamos estar a discutir propostas que vão promover um retrocesso no combate à corrupção.

Não seria a primeira, nem será a última vez.