Foi notícia, nesta última semana, que irá nascer o primeiro bebé português concebido após a morte do pai. É, sem dúvida, um assombro da técnica e da medicina. E faz, por si só, um “rasgão” nos limites com que todos fomos convivendo com as fronteiras entre a vida e a morte.
É, por outro lado, comovente, em função da morte do pai – que activamente terá contribuído com a sua decisão e com material genético para “aquele” embrião – que haja uma mãe que, evocando todo o seu amor por aquele homem, não só clame por este direto, como lute por ele e, finalmente, esteja à beira de ter nos seus braços o filho com que aqueles dois pais terão sonhado.
Se, “em circunstâncias normais”, termos no colo um bebé, acabado de nascer, será dos momentos mais inacreditáveis na vida – que não só nos dão motivos para perceber que o melhor dos nossos melhores sonhos é muito pouco para todo o arrebatamento que um recém-nascido “real” traz, a ponto de nos fazer sentir, simultaneamente, “Deus” e a mais desmedida humildade – diante desta brutal experiência de maravilhamento, após um percurso de anos, a “ressurreição” que este bebé representará transcende tudo o que se possa ter conseguido imaginado para ele.
Mas, por outro lado, nem sempre uma decisão como esta será tão luminosa assim. Haverá, seguramente, circunstâncias em que um bebé nascido em resultado destas contingências pode, também, traduzir uma espécie de “fuga para a frente. De “negação da perda”. E, a ser assim, a sua dimensão redentora pode “esbarrar” numa dor depressiva que ele não só não consiga amenizar como ela poderá comprometer partes significativas do seu desenvolvimento, que se acentuem com o tempo. Ou, noutras situações, mais movediças, esse peso acrescido, que poderá vir a ser colocado sobre ele, pode trazer demasiado “ruído” às expectativas que sobre um bebé se coloquem. Fazendo com que uma mãe que depositou nele uma espécie de “grito de triunfo” sobre os limites da morte reaja e o “penalize” e “responsabilize” pelo seu “falhanço”.
Colocarmo-nos no lugar desta mãe, considerando as circunstâncias que a terão trazido até aqui, fará com que quaisquer reservas – nomeadamente, éticas – que se possa ter nos levem a vacilar. Levando a que um momento destes nos torne empáticos com aquilo que ela estará a viver. Manter o júbilo e a privacidade será, por agora, o enorme desafio que terá nas mãos. Assumir a sua decisão como uma prova de amor por aquele pai o argumento ímpar que dará a este bebé o “romance familiar” com que todos procuramos reconhecer no amor dos nossos pais o motivo único que nos terá levado a nascer.
Haverá, por fim, quem afirme que um pai será sempre “um produto de primeira necessidade” no desenvolvimento de uma criança. E que nem sempre um progenitor se transforma num pai. As duas coisas são verdade. Mas se há circunstâncias que afastam um pai do crescimento de um filho, a forma como ele é trazido à sua vida (nomeadamente, pela mãe), legitimando-o nos “testemunhos” que lhe são confiados – feitos de histórias, de gestos, de objetos e da “presença” do pai – pode torná-lo “vivo” e presente. E, por isso mesmo, fazer com que ele deixe de ser só progenitor e se transforme, pela vida fora, num pai.
Em quaisquer circunstâncias, quanto maiores são os desafios da técnica mais eles nos obrigam a perguntar quais deverão ser os limites que separarão a nossa ousadia de, com o seu auxílio, fazermos de “Deus” da humanidade com que ponderamos a decisão de sermos mães e pais. A técnica, com o seu arrojo incansável, não deixará de nos interpelar, um dia depois do outro, a sermos sempre “mais pessoas”.