Os mortos de Nice somos Nós. Não os Outros, mas Nós, ou apenas os Outros na medida em que são o complemento do que somos, a parte Outra da nossa Identidade Portuguesa, logo Europeia, logo Ocidental, logo Democrática.
A morte aos ziguezagues na “Promenade des Anglais” a contemplar esse Mar Interior europeu (e Magrebino, e Mashrequiano) a que chamamos Mediterrâneo, é mais uma pincelada a vermelho-sangue no quadro do flagelo radical e fanático que ameaça a nossa Identidade, Portuguesa, Europeia, Ocidental, Democrática. Uma ameaça directa, através das vítimas inocentes de Nice – como ontem (em todos os ontens) de Bagdade, do Paquistão, de Zaventem, de Paris, de Londres, de Atocha -, ao povo que somos, o povo da Liberdade.
Porque nós somos o povo da Liberdade. Nós somos o povo da Democracia e da Tolerância. Nós somos o povo das fronteiras abertas, do abraço amigo aos desprotegidos do Mundo – e basta passear nas ruas de Londres, de Madrid, de Paris, de Berlim, de Lisboa, para percebermos o que isso significa. Nós somos uma civilização que se superou, assentou a paz perpétua no imperativo moral kantiano, no liberalismo anglo-saxónico, na liberdade, fraternidade e igualdade que ontem se celebravam no antigo “Camin deis Anglés”, como primeiro se chamou a marginal no velho dialecto nicense.
Ao atacar durante as celebrações da Tomada da Bastilha, os terroristas fizeram uma declaração de princípio contra a Democracia. Contra a Tolerância. Contra a Liberdade. Eles sabem que não podem vencer a Europa através das armas, pela conquista de território, mas que a podem vencer pelo medo. Levando os europeus, o povo da Liberdade, da Tolerância, da Democracia, aos poucos, a mudar. A pôr em causa a Liberdade. A Tolerância. A Democracia.
Vulnerabilidade e Habituação, eis os dois grandes perigos. Que os europeus se sintam cada vez mais vulneráveis, vítimas possíveis dos inimigos da sua civilização, e exigirão em crescente coro aos governos, directamente (via redes sociais, manifestos, petições) ou através de partidos também eles cada vez mais radicais, limitações à Liberdade. À Tolerância. À Democracia. Que os europeus se habituem a conviver com a ameaça, com os atentados, com a viciosa acção dos seus inimigos, e progressivamente, pouco a pouco, passo a passo, tenderão a aceitar essas limitações à Liberdade. À Tolerância. À Democracia.
Entendam-me bem: a Europa tem de se defender. Com prevenção, com colaboração europeia em apoio directo às acções nacionais, com colaboração dos Estados na acção europeia. A segurança interna europeia tem de ser reforçada, conjugando de forma cada vez mais eficaz a frente externa e a interna, as agência europeias, do Eurojust à Europol, passando pelo Frontex e pelo EASO (fronteiras externas), incluindo os países terceiros na equação. Tem de ser avaliada a estratégia de segurança europeia, procurando entender porque falha a prevenção. E cada país precisa de olhar para dentro de si, de criar condições para evitar que se formem e/ou desenvolvam “quistos” de radicalismo, nascidos do isolamento de comunidades étnicas e/ou religiosas, nos bairros de Bruxelas como nas “cités” francesas, onde se inquietam, medram e eclodem sucessivamente os contemporâneos ovos do mal.
Mais inclusão é a resposta, não o oposto. Com prevenção, nível nacional e europeu conjugados. Com interacção entre a dimensão externa – nas fronteiras da União – e interna, em cada um dos nossos países. Com força, com determinação, com o poder das armas, sempre que necessário.
Mas se a Europa escutar as sereias do Ulisses a prometer panaceias milagrosas sob a forma de repressão e limitação da Liberdade; se for seduzida pelas cornucópias da desventura a proclamar que a ameaça se vence pelo abandono da Tolerância; se seguir os partidos e movimentos mais ou menos radicais, que prometem suspender às vezes a Democracia, reduzi-la aqui e ali, meter na gaveta os valores que os Milénios nos ensinaram, então a Europa perdeu. Nós perdemos. Os franceses, as vítimas de Nice como as de Paris, de Bruxelas, de Istambul, perderam.
E “eles” ganharam. As serpentes passearão impunes pelas nossas cidades, viverão triunfantes paredes meias com o povo que foi da Democracia, da Tolerância e da Liberdade.
Não é esse o Mundo que gostaria de deixar aos meus filhos.