Poucos dias antes das eleições legislativas de 2024, deparei-me em Lisboa com um grupo de jovens militantes de um partido de esquerda mais radical a distribuir panfletos. Ao passar por eles, um dos militantes entregou-me um dos panfletos. Durante a minha breve viagem de metro, decidi dedicar-me à sua leitura. No final da página, após o programa, deparei-me com uma bandeira preta, branca e verde com um triângulo vermelho, ao lado da qual estava inscrito algo como (não tenho a certeza) “Palestina Livre” e “Cessar-fogo já”. A minha primeira reacção foi de perplexidade. Reconheço a gravidade da situação em Gaza; no entanto questionei-me sobre a relevância deste tema no contexto das eleições nacionais, cujo objectivo principal deveria ser a melhoria das condições socioeconómicas dos portugueses, entre outros temas fulcrais. Posteriormente, veio-me à mente: “E quanto à Arménia?” Os arménios, vítimas de uma terrível limpeza étnica, não merecem a atenção dos partidos de esquerda? Por que razão os palestinianos recebem tanta solidariedade da esquerda (sobretudo radical e extrema), enquanto os arménios são ignorados?

Por que deveria eu criticar os israelitas, que reagiram — ainda que com meios bélicos significativos — a um massacre vil perpetrado pelo Hamas, e ignorar a limpeza étnica (com suas violações e execuções) causada pelas forças militares do Azerbaijão? E por que razão os membros de uma esquerda mais radical – Bloco de Esquerda, Livre e PCP em Portugal; uma facção do Labour no Reino Unido representada por Jeremy Corbyn; La France Insoumise, Les Verts e uma parte do Partido Socialista em França; uma facção mais radical dos democratas representada pelas senadoras democratas Ocasio-Cortez e a somali Ilhan Omar nos EUA — frequentemente abordam a terrível situação em Gaza, mas ignoram a igualmente terrível situação no Alto Carabaque (também conhecido como Artsaque) e na Arménia? Será que a vida dos arménios vale menos do que a dos palestinos? Infelizmente, a actualidade mostra-nos que há vítimas dignas de serem choradas, e outras simplesmente ignoradas.

OS ARMÉNIOS – ETERNAS VÍTIMAS DAS POTÊNCIAS ORIENTAIS

 

A história da Arménia é antiga e rica. Os arménios estabeleceram-se na região do Monte Ararat – considerado sagrado para eles, supostamente o local onde a Arca de Noé terá repousado – por volta do século VIII ou VII a.C. Eram um povo indo-europeu (o que os torna nossos primos próximos) que se misturou com a população local no antigo Reino de Urartu. Inicialmente, a Arménia floresceu como um reino poderoso, mas ao longo do tempo enfraqueceu devido a ataques de reinos e impérios mais poderosos. A história dos arménios é marcada por ocupações, perseguições, expulsões de suas terras e até genocídios. Desde as ocupações romana e persa na Antiguidade, passando pelos constantes ataques dos árabes muçulmanos, até à ocupação pelos Bizantinos e finalmente pelos turcos, é uma narrativa de lágrimas e sangue. Todavia, mesmo durante os séculos em que viveram sob o regime de dhimmis — não-muçulmanos em território muçulmano, sujeitos a menos direitos e obrigados a pagar a Jizia, um “imposto da humilhação” — a partir do século XIV, os arménios conseguiram preservar sua cultura e religião.

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O drama atingiu o auge durante a Primeira Guerra Mundial. Os “Jovens Turcos”, um movimento nacionalista que ambicionava a homogeneização da Turquia, planearam a deportação e o massacre dos arménios na chamada Arménia Ocidental. Em Abril de 1915 começou o genocídio sistemático dos arménios, resultando na morte de 1,5 a 2 milhões de arménios. Este terrível evento marcou profundamente os arménios, sendo um verdadeiro trauma que permanece na memória colectiva. Seguiram-se 70 anos de ditadura comunista, em que o poder soviético tentou destruir a identidade colectiva dos arménios,  perseguiu os religiosos, executou vários nacionalistas bem como parte da elite arménia que se opunha ao colectivismo forçado. A independência da Arménia em 1991 não permitiu aos arménios viverem em liberdade e paz, pois logo surgiu a questão do Alto Carabaque. O Alto Carabaque é uma das regiões históricas dos arménios, onde vivem há mais de 2500 anos. Os confrontos étnicos entre arménios e azerbaijanos começaram em 1988, quando ambos ainda viviam sob o regime soviético. Em 1990, a população daquela região pediu para se juntar à Arménia. A reacção do Azerbaijão foi de recusa total, desencadeando uma guerra que durou até 1994, culminando com a vitória da Arménia e a ocupação da maior parte do Alto Carabaque. O status quo manteve-se até 2020, quando o Azerbaijão, liderado pelo presidente Ilham Aliyev (visto como um ditador) e com forças armadas modernizadas — o petróleo permitiu ao Azerbaijão comprar armas modernas aos israelitas e aos turcos — atacou a região. O uso de armas modernas, principalmente drones, permitiu uma vitória rápida do Azerbaijão. O futuro dos arménios no Alto Carabaque tornou-se mais sombrio…

A Rússia prometeu interpor-se entre os dois países, mas os poucos militares que enviou foram incapazes de impedir uma nova guerra relâmpago do Azerbaijão em Setembro de 2023. A partir deste momento, restava apenas uma opção para os arménios de Alto Carabaque: abandonar as suas casas! Fugir ou enfrentar o massacre nas mãos dos soldados azerbaijanos,  alimentados durante anos com propaganda de ódio contra os arménios.  Dos mais de cem mil arménios (100.000) no Alto Carabaque em agosto de 2023, restam… cerca de vinte a trinta.  Não vinte ou trinta mil, não, entre vinte e trinta arménios. Uma das maiores limpezas étnicas do Pós-Segunda Guerra Mundial.

Poderíamos considerar que a história termina aqui, que os arménios nunca mais recuperarão o Alto Carabaque, e que daqui em diante vão virar a página, concentrando-se no desenvolvimento do país e buscando a integração com a União Europeia. Contudo, segundo o governo arménio bem como serviços secretos ocidentais, o presidente do Azerbaijão não pretende encerrar este capítulo aqui. Ele exigiu que a comunidade internacional não interfira nos assuntos internos do seu país. Continua a posicionar os seus soldados junto à fronteira com a Arménia. Além disso, a retórica anti-Arménia no Azerbaijão persiste. Muitos temem que ele não vá parar por aqui, e que a próxima região a cair possa ser Siunique, com o objectivo de estabelecer uma ligação territorial entre o Azerbaijão e a República Autónoma do Naquichevão. Semelhante a um certo ditador alemão nos anos 30, o que Ilham Aliyev não consegue alcançar por meio de negociações, busca alcançar pela força. A União Europeia, que tanto gosta de criticar certos líderes mais nacionalistas tal como Viktor Orbán, prefere não atacar muito Ilham Aliyev, pois este vende gás natural aos europeus. Escreveu o grande escritor francês Sylvain Tesson nas páginas do Le Figaro que as elites da Comissão Europeia não se importavam de chorar sobre o terrível destino dos 100.000 arménios expulsos do Alto Carabaque/Artsaque, mas que as mesmas elites, com a senhora Von der Leyen à cabeça, pretendiam continuar a negociar com o preidente/ditador do Azerbaijão. Os arménios estão infelizmente sós no mundo…

Dito isto, resta-nos questionar: qual a razão de uma parte significativa da intelligentsia de esquerda ocidental não apoiar os arménios? Que eu saiba, os jornalistas, panfletários, colunistas e intelectuais mais à esquerda, sempre à procura de oprimidos para defender, deviam saltar das cadeiras e gritar na rua “Viva o Alto Carabaque/Artsaque livre, abaixo o ditador do Azerbaijão”. Por que não houve manifestações com centenas de milhares de pessoas organizadas pela esquerda em Lisboa, Londres, Paris, Berlim ou Nova Iorque? Se o fizeram pelos palestinianos, não poderiam ter feito o mesmo pelos arménios? Por que os estudantes universitários americanos e franceses que bloqueiam universidades pela Palestina não o fizeram quando 100.000 arménios foram expulsos do Alto Carabaque/Artsaque? Por que nos panfletos políticos dos partidos mais à esquerda não se juntou uma bandeira arménia ao lado da bandeira palestina?

Será que os arménios são considerados demasiado cristãos para serem considerados vítimas por uma certa esquerda? Além disso, estão a ser expulsos das suas casas por soldados muçulmanos. Será que esses dois factos impedem uma certa esquerda de falar sobre o caso arménio? Os arménios expressam o desejo de fazer parte da Civilização Ocidental, o que pode ser mais um ponto negativo aos olhos de uma certa esquerda. Aproximaram-se dos EUA, o gigante capitalista, inimigo dos timoneiros do proletariado. Mantêm também uma relação especial com a França, país que, como todos sabem, esteve envolvido em guerras “imperialistas e neo-coloniais”, para parafrasear os velhos discursos marxistas empoeirados. E para completar, foram aliados dos Cruzados há 800 anos, mais um ponto suspeito aos olhos dos comissários políticos marxistas. Ou será apenas um mero acaso o facto de uma certa esquerda ignorar o sofrimento dos arménios?

OS “BONS” OPRIMIDOS

Há muito tempo que uma certa esquerda escolhe quem é “oprimido” e quem não é… Se é verdade que os palestinianos enfrentam uma situação terrível que nos toca a todos, há muitos outros povos oprimidos que não recebem apoio, conferências, não têm livros escritos a contar a sua história, não há alunos que bloqueiam universidades em honra deles, não têm manifestações ou boicotes em seu nome. O mundo é vasto; será que apenas os palestinianos sofrem? Além dos arménios mencionados anteriormente, existem vários casos de povos que estão a ser oprimidos como nunca, alguns à beira da extinção.

Quem se preocupa com a opressão dos milhões de cristãos que vivem em países de maioria muçulmana? São cidadãos de segunda classe, vivendo como dhimmis. Quem se preocupa com o facto de os cristãos no Iraque (eram 1,5 milhões em 2003, agora são 400 mil) não terem acesso aos mesmos direitos e oportunidades que os muçulmanos, sofrendo constantemente humilhações, homicídios e atentados? E os cristãos coptas no Egipto, que enfrentam uma situação semelhante? E o que dizer dos cristãos no Líbano, que constituíam quase 60% da população antes da guerra civil de 1975-1990? Actualmente, representam 20 a 30% da população, devido a uma taxa de natalidade inferior à dos muçulmanos sunitas e chiitas e a uma emigração maciça durante a guerra civil. Embora sejam os únicos cristãos no Médio Oriente a usufruir dos mesmos direitos e oportunidades que os muçulmanos, a situação tem-se deteriorado, enfrentando actualmente ameaças do Hezbollah para uma nova guerra civil. Recentemente, o escritor Richard Millet – que lutou em 1975 com as falanges cristãs, a milícia cristã maronita mais poderosa durante a guerra do Líbano – afirmou que a comunidade cristã no Líbano poderia ser esmagada sem que ninguém no Ocidente derramasse uma única lágrima. E quanto aos cristãos no norte da Nigéria, massacrados por islamitas fanáticos do Boko Haram, quem se preocupa com eles?

Sem falar nos cristãos perseguidos em países muçulmanos, que tal falarmos da minoria yazidi, que sofreu uma perseguição atroz na Síria? Quem ainda se preocupa com ela? E os Chin, os Kachin, os Kayah, os Mon, os Rakhine, os Kareni, massacrados pela junta birmanesa, não merecem a nossa compaixão? E as populações de Darfur, ainda hoje perseguidas e massacradas? E as populações da região de Tigré, na Etiópia, que sofrem às mãos dos soldados etíopes? E os Hmong, povo da montanha que, por ter apoiado os franceses durante a guerra da Indochina e os americanos durante a guerra do Vietname, são perseguidos e massacrados pelo governo marxista do Laos? Vivem em condições deploráveis nas montanhas, escondidos dos militares do regime laosiano, sem medicamentos, sem escolas para as crianças, vestidos de trapos, com apenas velhas armas para se defenderem. Não merecem uma manifestação? Ou o facto de serem perseguidos por um governo comunista impede que uma certa esquerda fale neles? E os tibetanos? Há milhares de anos a viver no Tibete, cada vez mais substituídos etnicamente pelos chineses de etnia han… E os uigures? Afinal, estes últimos são muçulmanos e são perseguidos na sua terra. Ah, mas esperem, estão a ser oprimidos pelo Partido Comunista da China, logo também não se fala neles. E os civis israelitas massacrados pelo Hamas? As mulheres israelitas violadas pelos palestinianos? Os israelitas mortos à frente dos filhos, as crianças degoladas à frente dos pais… Não merecem a compaixão de uma certa esquerda? Pelos vistos não, tanto que os alunos de extrema-esquerda que bloqueiam universidades dizem abertamente que não querem ouvir falar dos massacres do dia 7 de Outubro de 2024, como se o sofrimento dos israelitas não existisse… Deviam ler o “Mercador de Veneza” de William Shakespeare: “If you prick us, do we not bleed?”

Todos nós tendemos a escolher defender uma determinada causa ou população. É normal, é humano. Algumas causas defendidas pela esquerda podem ser louváveis, contudo, outras podem ter consequências negativas. A luta contra o suposto “privilégio branco” gerou um racismo “anti-branco” em muitas universidades ocidentais. A oposição às políticas de Israel provocou ondas de anti-semitismo nessas mesmas universidades, com estudantes de movimentos antifascistas e estudantes muçulmanos ameaçando e atacando estudantes judeus, levando muitos a considerar a fuga para Israel. A luta contra a suposta “islamofobia ocidental” resultou em alianças contra-natura entre esquerdistas radicais e islamistas. A luta contra a transfobia levou ao radicalismo no movimento LGBTQI, com homens transexuais a agredirem fisicamente mulheres em manifestações no Dia Internacional da Mulher (como ocorreu em Paris, por exemplo), acusando algumas mulheres de serem TERF (trans-exclusionary radical feminist), simplesmente por estas últimas afirmarem que existem apenas dois sexos, homem e mulher, uma verdade científica que certos elementos da esquerda parecem não querer reconhecer.

É perfeitamente normal que partidos e activistas de esquerda defendam os palestinianos; é louvável que o façam e possam dar voz aos que não a têm. No entanto, deviam deixar a questão da Palestina fora das eleições legislativas e europeias. Além disso, não deveriam bloquear universidades nem interpelar os governos europeus a propósito de cada bombardeamento em Gaza, uma vez que são soldados do Tsahal, e não soldados europeus, que estão a atacar Gaza. No entanto, se insistirem em continuar com tais acções, então seria justo e apropriado que a esquerda também se preocupasse com a Arménia, assim como com todos os povos que mencionei anteriormente. Mas não será esta crítica a Israel, considerado um “posto avançado” do Ocidente, apenas a ponta do iceberg de algo mais preocupante? Não estaremos na realidade perante uma aliança entre a extrema-esquerda e os islamistas, algo que intelectuais franceses intitularam nos anos 2000 como “Islamo-gauchisme” (Islamo-esquerdismo em português)? É bem possível, e a realidade mostra-nos que esta possibilidade deve ser considerada.

Entretanto, enquanto escrevo estas linhas, os arménios continuem a sofrer em silêncio, com uma dignidade de admirar. Rezemos por eles, que não nos esqueçamos que eles merecem por fim viver em paz, naquilo que sempre foi o seu território. Longa vida à Arménia.