Nos tempos mais recentes tenho lido e ouvido alguns comentários, vindos de pessoas conotadas com a direita do PS, que não estão certos no que concerne os méritos das PPP e das USF. A chamada esquerda ainda faz pior quando entende que gestão privada de unidades de saúde impediria a existência de um plano nacional de vacinação, é de nos benzermos, ou critica as PPP por razões meramente ideológicas sem qualquer tipo de base factual. Quanto a cuidados primários, a infeliz verdade é que a esquerda nem ideias tem sobre o tema que não sejam a garantia de “médico de família para todos”, esquecendo que deveria ser “médico de família para todos que o desejarem”, ou a propalação de que só há bons cuidados se forem exclusivamente públicos.

É a tal fixação esquerdófila de que o importante é normalizar por baixo, em vez de aumentar o nível de acesso para todos, mesmo que isso implique uma distribuição mais justa dos pagamentos, sejam eles os impostos ou as taxas acessórias no ponto de prestação. Neste ponto, a direita persiste na ideia de que a carga fiscal deve diminuir. Tudo bem, mas essa diminuição deve ser antecedida, já o tenho dito noutras ocasiões, por uma ampla revisão do IRS que terá de ser aplicado a TODOS, sem exceção. Aumentar salário mínimo, por exemplo, é um imperativo económico, mas terá de corresponder a uma eliminação de isenção de IRS e a uma revisão de escalões. Por outro lado, acabar com taxas moderadoras é bom para quem as paga, a classe média que paga a maior parte dessas taxas. Mas o que deveria ser feito seria diminuir o número de isentos e distribuir o esforço por todos os beneficiários, em vez de colocar carga ainda maior nos impostos, ou seja, no OE. Em todo o caso, tenham atenção a que a diminuição da carga fiscal – ou das taxas moderadoras — não pode conduzir a uma diminuição (ainda mais?) do nível de serviços de saúde públicos em Portugal e que só com grandes injeções de dinheiro, no imediato ou diferindo os pagamentos no tempo, será possível recuperar o SNS.

Voltando ao tema inicial, interessa, de uma vez por todas, que as pessoas percebam que o principal mérito das PPP não está em serem mais baratas. Daqui em diante vou repetir coisas que já escrevi, embora com alguns acrescentos.

As PPP da saúde são mais baratas porque, em primeiro lugar, os contratos que o governo PS da altura lhes impôs eram verdadeiros subfinanciamentos para o nível de serviço exigido. Convirá não esquecer que o objetivo do Estado era pagar serviços e, simultaneamente, ressarcir pela construção, equipamento e funcionamento de uma unidade hospitalar de que o SNS precisava e o Estado não podia pagar. Tratou-se de um pagamento a prestações, verdadeiramente suaves, de hospitais que, de outra forma, ainda hoje não existiriam. Em segundo lugar, o subfinanciamento das PPP é totalmente suportado pelas entidades gestoras que foram acumulando prejuízos de que os contribuintes nem se deram conta. Não houve remessas extra para pagar dívidas, nomeadamente a fornecedores, porque o Estado apenas tem de pagar o estipulado em contrato e nada mais. Sublinho, mais uma vez, que dívidas a fornecedores nas PPP são dívidas da entidade gestora e não do Estado (isto até já foi assim com os hospitais EPE mas a UE deixou de ir nessa conversa de “desorçamentação” e o perímetro da dívida pública abrange tudo o que é de gestão pública). E também são mais baratas porque, em terceiro lugar, além de o Estado não ter qualquer tipo de risco associado à manutenção dos equipamentos e à prestação de cuidados de saúde, as entidades gestoras até multas foram pagando sempre que houve desconformidades com o contrato, sejam lá as que tenham sido. Imaginem se os hospitais públicos fossem obrigados ao mesmo.

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Mas não é por terem sido mais baratas que as PPP da saúde foram e são boas. Isso, o custo, é meramente acessório e impossível de manter em contratos futuros. Logo, os comentadores de direita terão de ser mais finos na análise e não se cingirem à avaliação, discutível, de que as PPP foram mais baratas para o mesmo nível de serviço de um hospital EPE. As PPP na saúde foram, além da única possibilidade para alargar o parque hospitalar público nacional — e nem há outra —, um recurso importante para termos hospitais acreditados pela Joint Commission International, (quase não há hospitais públicos nessa circunstância), com livre contratação de pessoal em função das necessidades e ajustamento da prestação à qualidade adequada ao grau de exigência dos cuidados contratados, a que se deve acrescentar a possibilidade de pagar melhor e até conceder incentivos pecuniários ou outros aos seus trabalhadores.

Mas as PPP da saúde também têm problemas inerentes ao estipulado nos contratos que favoreceram o Estado e eram, nesse aspeto, desequilibrados. Como consequência disso há listas de espera significativas em algumas delas, já que a produção contratada ainda esteve abaixo das necessidades — os contratos não previam revisão pontual e adaptativa da produção anual e há, proporcionalmente, mais primeiras consultas do que segundas, com o consequente atraso nas consultas de follow up — e a ligação aos cuidados primários é defeituosa. Acresce que houve sempre problemas quanto ao pagamento de tratamento de doentes com infeção pelo HIV e a dotação contratada para doentes com cancro foi sempre insuficiente, até porque descurou o enorme aumento dos medicamentos oncológicos. Por outro lado, a regulação do cumprimento do contratado tem custos e para ser bem feita obrigaria a reforço de meios das ARS e ACSS. Talvez seja um assunto para entregar à ERS, a tal entidade “independente” que tem meios e orçamento para fazer muito mais do que tem feito. Mas o nível de serviço dos hospitais PPP é excelente – eu já o experimentei – e as instalações estão imaculadamente limpas e mantidas. Não é o caso de todos os hospitais EPE do SNS. Só por isto as PPP seriam sempre boas.

Logo aqui deixo a sugestão de que os hospitais EPE, tal como acontece nas PPP, contratem a sua manutenção com empresas externas, em vez de andarem a tapar buracos com a escassa e esforçada prata da casa. Estou certo de que dessa forma não haveria maçanetas de porta substituídas por cordéis, bolor crónico nas paredes, lâmpadas por substituir, caixilhos de janelas podres, autoclismos avariados durante meses, infiltrações em telhados, arruamentos interiores esburacados, etc., etc., etc. Não, não venham com a história de que os hospitais principais do SNS estão velhos. Já o escrevi, em Londres, Paris, Barcelona, Roma e Nova Iorque também há hospitais antigos que, no entanto, têm interiores modernos e adequados.

É certo que a ideia de generalizar o modelo PPP a todos os hospitais do SNS nunca seria possível nos moldes em que os contratos PPP foram até agora feitos. Não acho que a entrega da gestão dos hospitais EPE a privados seja panaceia e é um modelo que está ferido de erros de julgamento. O mérito da gestão privada não está na gestão em si, mas na capacidade de aguentar prejuízos à custa da entidade gestora, o que é insustentável a longo prazo. Não é evidente que os “privados” tenham melhores gestores do que o público. O que não quer dizer que o SNS não pudesse pagar melhor aos trabalhadores, incluindo aos seus gestores. No entanto, além de ser útil a contratação pontual de serviços tais como os de manutenção e até alguns de prestação de serviços de saúde como sejam exames complementares de diagnóstico, existirão casos onde a entrega da gestão a entidades do setor social ou privado pode ser vantajosa, mais que não seja por permitir uma melhor gestão de meios humanos e garantir o cumprimento de metas assistenciais pré-acordadas. Mas a verdade é que o Estado também pode fazer isso, bastando cumprir a legislação no que à autonomia das EPE diz respeito e financiando adequadamente, sem precisar de contratar privados. Teria de ser visto, caso a caso.

Dito isto, o anunciado fim das PPP tem duas razões subjacentes. Ambas más. A primeira é estritamente ideológica, ao nível acéfalo da crendice. Enfim, fé não se discute. A segunda radica na preguiça do Estado que não preparou atempadamente a revisão dos contratos a apresentar em novos concursos públicos. Ao invés, quis que as entidades gestoras aceitassem a prorrogação, sem termo certo, dos ruinosos – para as entidades gestoras — contratos em vigor. Uma entidade gestora, não sei se a mais prejudicada, não quis a prorrogação nesses moldes e o Estado, sem instrumentos negociais preparados, escolheu o caminho mais simples. Chamou a si a gestão, para já do Hospital de Braga, e vai ter de ajustar o financiamento às necessidades desse hospital. O problema é que, a longo prazo, pode ser um erro. No entanto, afirmar que o Hospital de Braga vai já ficar mais caro por ter deixado de ser gerido como PPP é uma falácia que não considera que, com a renegociação do contrato de gestão, o Estado teria sempre de pagar mais do que pagou até agora. Por enquanto, o contrato de PPP de construção ainda estará em vigor e isso salvaguarda a manutenção. Nem tudo é mau.

Outro erro de apreciação que tenho encontrado em textos e afirmações à direita do PS é a defesa incondicional das USF, em especial do modelo (não é tipo) B. O modelo B é o tal em que há incentivos pecuniários para os profissionais. Ora, convirá não esquecer que este modelo, com algumas indiscutíveis virtudes e concebido por um governo do PS, é ruinoso para o Estado e é a sua incomportabilidade que explica a fraca progressão de unidades do modelo A para o modelo B. A boa notícia é que o Ministério da Saúde quer rever a lógica de incentivos e toda a contratualização das USF. Sobre este assunto a posição da direita deveria ser a da defesa da contratualização com privados para a prestação de cuidados de saúde primários, começando pelas áreas onde há falta de oferta de cuidados em tempo útil, em vez de defender o modelo B de USF, cujas vantagens poderão ser muitas em determinadas áreas do território, mas não em todas, e só serão eficientes se os incentivos forem revistos. Há um modelo de USF previsto na lei, o modelo C, que prevê a contratação com grupos de médicos privados e que deveria ser alargado à contratação com empresas privadas de prestação de cuidados e a entidades do setor social. Ainda não foi implementado.

Até lá, já que o tempo socialista é o da preguiça do Verão eterno, desde já sugiro que revejam os termos de contratualização dos médicos das USF, os tais que ganham como se estivessem em exclusividade sem estarem – uma boa base salarial que deveria ser a de todo o SNS —, prevendo disponibilidade permanente com acesso dos doentes ao telemóvel dos médicos, com um elemento de contato escalado para as noites, e ao email. Bem melhor do que uma central telefónica. Funciona noutros países. Ou, então, porque não pagar melhor as visitas domiciliárias?

Para já, porque o debate da melhoria do SNS tem de ser feito baseado em factos e análises concretas, o que se aconselha a todos os intervenientes é que parem para pensar e não atirem mais dardos demagógicos uns aos outros. Já que a esquerda, depois de ter quase destruído em 4 anos o que demorou décadas a ser feito, está embevecida com o SNS, aproveitemos esta paixão para sermos, utilizadores e profissionais, ainda mais exigentes.

P.S. – Há um potencial conflito de interesses no meu raciocínio sobre a contratualização de cuidados primários aos setores social e privado. Não exerço medicina no setor privado, mas sou membro não executivo do conselho de administração da empresa Walkin Clinics, detentora da marca MiMed. Seria excelente se todos os que opinam deixassem sempre claro qual o seu nível de conflitos de interesses. Em especial quando há ligações, por exemplo, a escritórios de advogados. Pela minha parte deixo aos leitores a avaliação da distorção intelectual que possa resultar do conflito que julgo poder existir. É assim que deveria ser sempre que se emite uma opinião.