Admitamos que os eleitores escoceses desmontam esta semana o Reino Unido. Que dirão, daqui a cem anos, os explicadores? Preferirão, talvez,  as grandes causas, que supostamente tornavam o facto previsível: a identidade escocesa ou o petróleo do Mar do Norte, por exemplo. Acontece que a principal característica deste acontecimento é que ele não era previsível, independentemente das grandes causas que agora o possam explicar. Tanto não era, que foi o governo de David Cameron, agora em lágrimas, quem dramatizou o referendo, julgando que para castrar o separatismo escocês bastaria confrontá-lo com a possibilidade real da separação.

O diabo está sempre nos detalhes. Há dias, alguém chamava a atenção para a formulação da pergunta, que deu o “sim”, jovial e positivo, aos separatistas e deixou o “não”, frio e céptico, para os unionistas (“deve a Escócia ser um país independente?”, em vez de, por exemplo, “deve a Escócia permanecer no Reino Unido?”). Mas a lição mais interessante aqui não diz respeito apenas às pequenas causas dos grandes efeitos.

O referendo escocês é, em primeiro lugar, um encadeamento contingente de decisões e de manobras políticas. A história pode começar no fim da década de 1980. A política monetária de Thatcher devastou a indústria da Escócia. Uma das consequências foi a extinção do Partido Conservador local. Os seus votos deram nova vida ao Partido Nacional Escocês (SNP). Tony Blair, sempre hábil, tentou ultrapassar o nacionalismo com a “devolução” de poderes de governo à Escócia. Resultado: deu poleiro a Alex Salmond, o galo da capoeira nacionalista. David Cameron voltou a confiar na habilidade, convencido de que um referendo provocaria uma grande reacção unionista. Resultado: pôs a Escócia à beira da separação. Agora, com os demais partidos unionistas, Cameron tenta conter os escoceses com a promessa de ainda mais “devolução”. Mesmo que o unionismo prevaleça, a história não acabará. Sim, a Escócia tem nacionalidade e petróleo. Mas sem as habilidades de Blair e Cameron, talvez essas causas tivessem tido outras consequências.

A democracia, como qualquer regime, não é apenas escolha: é história, é lei, é ética. Há coisas que não devem ser referendadas, salvo em circunstâncias históricas extremas e quando não há dúvidas sobre o que está em causa. Sujeitar um Estado ou um regime ao tipo de referendo escocês é sempre arriscado: pode registar opções fundamentais, assumidas com gravidade, mas também inclinações passageiras, projectadas com ligeireza. Que género de escolha prevalecerá na Escócia? A semana passada, tivemos o espectáculo patético de David Cameron a explicar aos escoceses que, se não gostam dele, manifestem a preferência nas próximas eleições legislativas, e não neste referendo sobre o Reino Unido. E também há quem, na Escócia, espere da independência um welfare petrolífero de tipo norueguês. Tudo se mistura.

As nações, os Estados, e os regimes não são assunto ao nível do governo ou da política económica. Mudar de governo é uma coisa, mudar de país é outra. Se uma separação escocesa reflectir simplesmente o desagrado com o actual primeiro-ministro, como Cameron receia, ou a ilusão welfarista inspirada pelo mar do Norte, isto significa que, no caso da Escócia, uma elite política dividida e confusa expôs o que era património da história e reservatório de princípios ao acaso dos humores e demagogias de um momento eleitoral. Não haverá talvez melhor exemplo do fracasso das actuais lideranças políticas no Ocidente.

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