A recente introdução no mercado de uma terapêutica aprovada pelo INFARMED à base da planta da canábis suscitou várias dúvidas que importam esclarecer, não só pelo estigma historicamente associado à planta da canábis, como também pelo facto de estarem disponíveis em Portugal vários outros produtos com componentes da planta da canábis na sua composição e que alegam proporcionar benefícios para várias condições clínicas.

Em primeiro lugar, que diferenças existem entre as terapêuticas que necessitam de aprovação por parte da Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (INFARMED) e sujeitos a prescrição médica obrigatória e quaisquer outros produtos? De acordo com o Decreto-Lei nº8/2019, “as utilizações medicinais de preparações e substâncias à base da planta da canábis são estabelecidas e publicitadas como resultado de ensaios clínicos controlados, estudos observacionais, revisões sistemáticas e meta-análises da literatura internacional indexada, sendo estas a base das evidências científicas que até agora foram produzidas”. Antes de serem aprovados e introduzidos no mercado, e à semelhança do que acontece com qualquer medicamento, estas substâncias passam por um processo de aprovação complexo que inclui demonstração de qualidade e segurança. Todo o processo, desde o fabrico até à disponibilização na farmácia, tem de obedecer a rigorosos controlos de qualidade que asseguram a sua segurança para o consumidor final. No caso desta nova substância à base da planta da canábis para fins medicinais, tal como acontece com os medicamentos sujeitos a receita médica, cabe ao médico prescritor avaliar a pessoa e decidir se poderá beneficiar do mesmo, tendo em conta as indicações terapêuticas e o seu quadro clínico, como acontece no fundo com qualquer outro medicamento. Resumindo: tanto o médico como a pessoa à qual a terapêutica é prescrita sabem que princípios ativos contém e em que quantidade, para que quadros clínicos se destina e quais os possíveis efeitos secundários.

O receio que estas terapêuticas sejam usadas para outros fins (nomeadamente recreativos ou para venda a terceiros para os quais não foram prescritos) ou que tenham potencial aditivo é lícito, mas aplicável a tantas outras classes terapêuticas que existem disponíveis desde há vários anos, como os opióides e as benzodiazepinas. Há mecanismos existentes que permitem não só prevenir estes problemas, como também atuar caso se verifiquem, no sentido de proteger a saúde dos doentes e da população em geral.

Já os produtos à base da planta da canábis não regulamentados pelo INFARMED e que estão a ser vendidos de forma livre em lojas de rua ou na internet, não estão sujeitos aos mesmos controlos de qualidade nem necessitaram de evidência científica com qualidade equiparada à necessária para as preparações e substâncias à base da planta da canábis sujeitas a receita médica e dispensadas exclusivamente nas farmácias, que apoie as propriedades que anunciam. No caso específico dos produtos à base da planta da canábis, o seu valor e indicações terapêuticas depende das concentrações de substâncias extraídas da planta, como o tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD), e da proporção entre elas, bem como da ausência de contaminações com outras substâncias que podem não só interferir na ação do produto, como também originar efeitos secundários. Em circuitos menos controlados, há menos garantias para o consumidor da eficácia e segurança dos produtos, bem como da respetiva composição, o que pode originar uma multitude de situações, desde a falta do efeito desejado até a efeitos indesejados que são menos previsíveis, quer no tipo, quer na frequência.

Por fim, uma nota importante: o estigma associado à planta da canábis não se deve sobrepor nunca aos interesses dos doentes que dela podem beneficiar. O caminho para a desconstrução dos mitos é longo, mas necessário, e o acesso a informação de qualidade e o diálogo são os primeiros passos desta caminhada.

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