Durante o mês de Fevereiro, voltámos a assistir a um processo de radicalização e violência urbana, na Catalunha, como resposta à prisão do rapper Pablo Hasél. Um pouco por toda a Europa, e também em Portugal, não faltaram vozes de solidariedade para com o cantor, e críticas à justiça espanhola por, supostamente, ser instrumento de repressão por motivos políticos e, em concreto, por perseguir o que consideram ser manifestações de “liberdade de expressão” e ataques legítimos à Coroa. Boa parte das manifestações de apoio esquecem, porém, o cerne da questão: Hasél foi preso, não por fazer ataques à Coroa, mas sim por elogiar, reiteradamente, em diversos tweets, terroristas condenados. Foi também punido por acusar a polícia de tortura e a Coroa de corrupção? Sim, mas a sanção por insultos, difamação e calúnia em que compara o ex-rei Juan Carlos I a um chefe da máfia, ou acusa a polícia de torturar e matar manifestantes e migrantes, resultou na aplicação de uma multa de 25 mil euros. Como muito bem refere Diogo Noivo,  investigador que se tem dedicado ao estudo do terrorismo, em particular, o do separatismo basco (ETA), “a afirmação de que o rapper catalão Pablo Hasél foi preso por injuriar a Coroa padece de um mal considerado grave em tempos idos: é falsa”.

A prisão de Hasél trouxe, por isso, de novo, para as primeiras páginas da atualidade, a questão da independência da Catalunha e a legitimação pública da violência por parte de diversos agentes políticos, que minimizam, quer as formas de insurreição urbana, quer os apelos ao terrorismo que suportaram a ordem de prisão.

Ao contrário de Portugal (que, como muito bem assinalou aqui no Observador, Manuel Castelo Branco, filho de Gaspar Castelo Branco, barbaramente assassinado pelas FP-25 de Abril, à queima-roupa, à porta de sua casa, em 1986, tudo tem feito para apagar das páginas da História a violência e o radicalismo terrorista), Espanha encara o terrorismo como ele deve ser abordado: com total intransigência. Como nos explica o Diogo Noivo, em Espanha, e por razões mais do que atendíveis, “o enaltecimento do terrorismo provoca um desconforto plúmbeo”. Entre 1961 e 2011 – data em que a ETA formalmente depôs armas – morreram 829 pessoas, civis e militares, deixando um rastro de sangue, mas sobretudo de medo, com que poucos estão dispostos a compactuar. Espanha tem ainda presente o terrorismo islâmico dos ataques de Atocha, que em 2004 mataram 191 pessoas. Mas também inúmeras outras formas de terrorismo político que fustigaram o país nos anos 70 a 90. Desde logo, ações protagonizadas pela extrema-esquerda, como as que foram executadas pelos “Grupos de Resistencia Antifascista Primero de Octubre” (GRAPO), pela “Frente Revolucionario Antifascista y Patriota” (FRAP), pelos separatistas das Canárias, as “Fuerzas Armadas Guanches”. Mas também de extrema-direita, de grupos saudosistas franquistas, como a “Alianza Apostólica Anticomunista” (AAA ou “Triple A”), o grupo “Antiterrorismo ETA” (ATE), os “Grupos Armados Españoles” (GAE), os “Guerrilleros de Cristo Rey” ou o “Batallón Vasco Español” (BVE), que, entre 1975 e 1982, protagonizaram uma série de assassínios motivados politicamente. O próprio Estado espanhol formou o seu grupo terrorista, os “Grupos Antiterroristas de Liberación” (GAL), brigadas paramilitares criadas pelos socialistas espanhóis, o PSOE, para travar uma “guerra suja” contra a ETA: entre 1983 e 1987, os GAL executaram 23 pessoas, tendo ainda protagonizado diversos sequestros e torturas, sobretudo em território basco francês, onde os etarrasprocuravam refúgio.

O terrorismo que grassou em Espanha (e um pouco por toda a Europa), entre os anos 60 e 90, foi em boa medida politicamente motivado, e resultou da tentativa de impor, pelo medo, pretensões separatistas, historicamente artificiais, tentando elevar as identidades locais e as autonomias para o plano da autodeterminação e da independência políticas que, no plano jurídico e do direito internacional, não se apresentam viáveis. Como, e muito bem, assinala o Professor Francisco Ferreira de Almeida, “o Direito e a prática internacionais não revelam uma aceitação benévola das tentativas (endógenas ou exógenas) de desagregação, desmembramento ou dissolução territoriais, em nome de um pretenso direito à autodeterminação”, ideia que o Professor Azeredo Lopes concretiza na sua tese de doutoramento, “Entre Solidão e Intervencionismo – direito de autodeterminação dos povos e reações de Estados Terceiros”, quando, entre outros aspetos, analisa e distingue secessão, separatismo e descolonização. Na verdade, a defesa de uma autodeterminação, com a criação de um novo Estado, motivado de forma unilateral, pondo em causa a integridade territorial, só tem vindo a ser aceite em cenários extraordinários (por exemplo, perseguições religiosas ou étnicas) que, atualmente, não se colocam em Espanha.

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Importa, aliás, a este título, recordar que o Reino de Espanha, tal como o conhecemos hoje, é o resultado de movimentos de integração de uma série de outros Reinos, um processo multisecular e progressivo, complexo, que não pode ser ignorado. Este movimento tem a sua génese no famoso Reino das Astúrias, o primeiro território ibérico a libertar-se da dominação muçulmana, e que emergiu logo após a derrota do último rei Visigodo, D. Rodrigo, morto na famosa Batalha de Guadalete. É a partir das Astúrias e da sua cordilheira montanhosa que se inicia o processo da Reconquista, que deu lugar, em meados do século X, e na medida das sucessivas conquistas, a diversos reinos, entregues aos seus conquistadores: Reino das Astúrias, Reino da Galiza, e Reino de Leão. Fruto de vicissitudes dinásticas, os Reinos das Astúrias e da Galiza acabaram integrados no Reino de Leão. Mais tarde, e na medida da reconquista, surgiram outros reinos, como o Reino de Aragão, Castela e Navarra, e o próprio Condado Portucalense, que deu lugar ao Reino de Portugal.

Ora, os territórios que hoje conhecemos como “Catalunha”, ao contrário de outros territórios, nunca foram sede de um Reino, ou desenvolveram uma identidade territorial suficientemente relevante no quadro da construção da Espanha. Inicialmente recuperados aos muçulmanos pelo Rei Visigodo D. Rodrigo, a libertação dos mouros só ocorreu anos mais tarde, no século IX, pelas mãos do império carolíngio. Ainda na época medieval, no século X, formaram-se pela primeira vez uma série de condados que hoje constituem a Catalunha, assumindo pela primeira vez a sua autonomia, como defesa perante a decadência do império carolíngio, mas sob uma forma plural, ou seja, sem a formulação única de “Catalunha”. A consolidação da Catalunha faz-se nessa altura no contexto próprio das regras de uma sociedade feudal, sendo povoado em boa medida por gente fugida de França em consequência das guerras religiosas e feudais que aí se desenvolveram.

O Condado de Barcelona durou menos de dois séculos, tendo-se integrado no Reino de Aragão, arrastando com ele todos os restantes condados catalães que, sob a estripe feudal, havia subordinado. Nota-se, porém, que a integração no Reino de Aragão deu-se por via hereditária, e não no quadro de uma conquista militar.

Pelas “capitulationes matrimoniales de Barbastro” o Conde de Barcelona entregou, em meados do século XIII, o Condado ao Rei de Aragão que, em troca, lhe deu a mão da sua filha, de um ano de idade, tornando-se Conde de Barcelona e Príncipe de Aragão, uma vez que Ramiro II optou por renunciar à Coroa. A aliança com Aragão visava permitir que o Condado pudesse desvincular-se, no contexto medieval, da dominação francesa, algo que só ocorreu em meados do século XIII, altura em que Jaime I passou a ser rei de Aragão, de Valência e de Mallorca, bem como Conde de Barcelona. Com o casamento de Fernando de Aragão com Isabel, a Católica começou a desenhar -se a Espanha moderna que conhecemos hoje, realidade que existe desde o século XVI.

Assim, o que hoje associamos ser a Catalunha, sem nunca ter existido enquanto tal, de forma independente, em momentos decisivos preferiu entregar-se às mãos das Coroas de Aragão e, mais tarde, de Castela, sem qualquer intervenção militar (ao contrário, por exemplo, do Condado Portucalense que, pela mão de D. Afonso Henriques, no século XII, negociou com o Papa, no quadro feudal, a sua independência, dando origem a Portugal). O castelhano, enquanto língua, é usado na região desde os tempos dos Reis Católicos, tendo desde aí a Coroa espanhola respeitado o estatuto de autonomia que se confirmou na criação, em pleno século XVI, da Generalitat, e na permissão da manutenção de um direito próprio até 1714. Só no século XVIII, o Condado de Barcelona deixou de ser uma entidade política e jurídica diferenciada. O espaço político daquilo que se define ser hoje a “Catalunha” é uma construção recente, com a criação da Comunidade da Catalunha, em 1914, e que durou até 1925, e com os estatutos de autonomia de 1932, reforçados em 1979 e 2006.

Ora, Espanha é hoje uma monarquia constitucional de base parlamentar, e democrática, com separação de poderes, e que integra 17 autonomias, no respeito por aquilo que é a sua conformação histórica. A identidade da Espanha é feita, em grande medida, na diversidade de diferentes regiões, que têm língua e tradições próprias. Arrisco-me a dizer que a Catalunha será, no contexto espanhol, uma das regiões cujos elementos identitários e históricos são mais frágeis, sendo uma construção recente, que dificilmente terá fundamentos jurídicos para suportar uma proclamação unilateral de independência. Aliás, a ampla autonomia de que dispõe, a par da sua integração histórica na Espanha por meios não violentos, são elementos que fragilizam de sobremaneira a pretensão catalã, pois, em bom rigor, os catalães nunca existiram enquanto tal, como nação independente; não foram subjugados a Espanha por via da força; e dispõem de um amplo estatuto de autonomia, concedido reiteradamente ao longo da História, que não lhe permite proclamar a independência de forma unilateral, por razões do tipo humanitário ou de defesa da sua identidade religiosa ou cultural.

Neste cenário, o apelo de Hasél à violência e a recuperação do terrorismo são atos de uma enorme gravidade, puníveis na lei, que só a ignorância histórica ou o enviesamento político fazem por minimizar, confundir ou falsear. Nos tempos que correm, a unidade da Espanha está hoje fragilizada, junto das populações moderadas, muito mais por culpa do poder central e da sua incapacidade de lidar com as autonomias, do que por ação de radicais; o desprestígio da Coroa espanhola também se deve, e muito, à atuação da Casa Real. Nesse sentido, o debate entre Monarquia e Republicanismo é legítimo, com são legítimas as aspirações autonómicas. Porém, as concessões a apelos violentos, de insurreição, quando não está a Catalunha asfixiada na sua autonomia, devem merecer a nossa crítica intransigente. A defesa da democracia e da liberdade de expressão faz-se na promoção do diálogo e do espaço da diferença, não na apologia da violência, do saque, do caos, tenham estes atos origem em grupos de extrema-esquerda, ou de extrema-direita. Nesse sentido, é fundamental recuperar a memória histórica destes atos, sem os esconder, para que na homenagem às vítimas se assinale a ameaça que permanente paira sobre as democracias, a liberdade, e a vida de cidadãos inocentes.