Chumbado que foi pela Assembleia da República, no passado dia 23 de Outubro, o referendo sobre a (des)Penalização da Morte a Pedido, resultante da Iniciativa Popular subscrita por quase 100 mil cidadãos, eis-me de novo a ter de falar sobre o tema da eutanásia.

Os tempos difíceis em que vivemos – com uma crise de saúde pública sem precedentes, onde já nem os cuidados de saúde primários estão a ser prestados pelo SNS a grande parte da população, em resultado da não realização de milhões de consultas e do adiamento de milhares de exames de diagnóstico e de tratamentos – e as graves crises sanitária, económica e social que o país atravessa deveriam ter levado os deputados, se não a cancelar, pelo menos a suspender o processo legislativo que visa a despenalização e a legalização da morte a pedido, eufemisticamente denominada de “morte medicamente assistida”, mas que será, na realidade, uma morte medicamente provocada e/ou ajudada. Era o mínimo que podiam fazer e era, sem dúvida, aquilo que se esperaria que fizessem por respeito aos portugueses (vide o meu anterior artigo “A Pandemia, o Estado da Nação e a Eutanásia”)!

Infelizmente, nem a crise pandémica, nem o estado de emergência e de calamidade pública travaram o andamento dos trabalhos parlamentares. Conforme foi noticiado, os deputados preparam-se para submeter esta lei a votação final global antes do Natal ou no início do novo ano. Suspendem-se e restringem-se direitos, liberdades e garantias, mas não se suspende este processo legislativo, apesar da gravidade das consequências que a aprovação de uma lei desta natureza não deixará de ter no SNS e na sociedade portuguesa, em particular junto dos mais vulneráveis, seja por doença, seja pela idade.

Ora, se existe um momento que seja ainda mais desadequado e inapropriado à aprovação desta lei é o momento presente. Diria mais: aprovar esta lei no momento que o país atravessa será um ULTRAJE e uma AFRONTA aos portugueses e uma VERGONHA para os deputados e para o País!

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Mas, pelos vistos, para os deputados este parece ser o momento certo, nada os travando nesta sua obsessão (dirão alguns) ou determinação (dirão outros) ideológica, já que nenhuma justificação ou necessidade sociais a reclamam e muito menos a exigem: nem o estado calamitoso do SNS, nem a mortalidade associada à Covid, nem o excesso de mortalidade a ela não associada, mas dele decorrente e que tudo indica se irá agravar em 2021. NADA! Antes pelo contrário, mais parece que os deputados querem aproveitar o momento terrível que o país atravessa para aprovarem esta lei enquanto os portugueses estão anestesiados pelo medo da Covid e distraídos com a época natalícia.

Que belo presente de Natal ou de Ano Novo que os deputados querem oferecer aos portugueses: a eutanásia! Em vez de ajudarem os portugueses a viver, vão ajudá-los a morrer…! Impõe-se, por isso, atentarmos naquilo que os deputados se preparam para oferecer aos portugueses.

No passado dia 23 de Setembro, a deputada Isabel Moreira entregou, ao grupo de trabalho que no Parlamento está encarregue da preparação do debate na especialidade dos vários projectos de lei, uma proposta do denominado “Texto de Substituição”.

Segundo declarações da própria, à data, à Agência Lusa, este texto pretendia fazer “a sistematização do melhor de todas as propostas” constantes dos cinco projectos de lei (do PS, BE, PAN, PEV e IL) aprovados na generalidade a 20 de Fevereiro. Recorde-se que a deputada Isabel Moreira foi incumbida de preparar o referido texto de substituição (ou de consenso) na reunião do grupo de trabalho tida no dia 3 de Junho.

Decorridos mais de três meses e meio desde que foi incumbida de tal tarefa, eis que, surpreendentemente – ou talvez não -, a deputada Isabel Moreira apresentou um texto que pouco ou nada substitui em relação ao projecto de lei do PS (nem sequer se deu ao trabalho de alterar a referência à “50ª alteração ao Código Penal” para a 51ª alteração), pelo que talvez tivesse sido melhor denominá-lo de “texto de repetição” e não de “texto de substituição”. Como diz o provérbio, “a montanha pariu um rato” e, no caso, o rato é socialista, com o devido respeito é claro (vide anterior artigo intitulado “Eutanásia socialista à la carte: leve, ligeira mas letal”).

Na realidade, a proposta de “texto de substituição” apresentado pela deputada Isabel Moreira corresponde quase ipsis verbis ao projecto de lei do PS, tendo sido introduzidas pouquíssimas alterações em relação ao mesmo, como poderá ser comprovado pela leitura deste TEXTO, onde assinalei em realce as alterações face ao projecto de lei do PS, identificando, quando possível, a sua proveniência, a maior parte importada do projecto de lei do BE, tendo todos os outros projectos de lei sido pura e simplesmente ignorados e descartados (com uma pequena excepção). Talvez por essa razão, e por saber que os deputados do PS e do BE serão, em princípio, em número suficiente para aprovarem a versão final desta lei, é que o PAN não apresentou ao grupo de trabalho quaisquer propostas de alteração a esta proposta de texto de substituição, ao contrário do que o fizeram o BE, o PEV e a IL.

É, assim, forçoso concluir que, para a deputada Isabel Moreira, todas as “melhores” propostas sobre a matéria constam do projecto de lei do PS e apenas poucas do projecto do BE, projecto esse que é, aliás, quase idêntico ao do PS. Contudo, basta ler os vários projectos de lei para se concluir precisamente o contrário: o projecto de lei do PS, quer pela amplitude dos casos à partida admitidos, quer pela total falta de rigor e múltiplas insuficiências de que padece é capaz de ser o pior dos projectos de lei que foram apresentados.

Uma vez que, no momento em que é escrito o presente artigo, ainda não se conhece o texto final desta lei, não se sabendo quais as alterações propostas pelos outros partidos que serão indiciariamente aprovadas pelo grupo de trabalho, irei apenas analisar o artigo da proposta do texto de substituição que estabelece os requisitos de aplicação da lei – cuja redacção não será, no essencial, alterada -, deixando para momento posterior a análise do procedimento administrativo, indevidamente chamado de “procedimento clínico”, que poderá conduzir à “antecipação” da morte pedida.

Estabelece o artigo 2º da proposta do texto de substituição o seguinte:

1 – Para efeitos da presente lei, considera-se eutanásia não punível a antecipação da morte, por decisão da própria pessoa, maior, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.

2 – O pedido subjacente à decisão prevista no número anterior obedece a um procedimento clínico e legal, correspondendo a uma vontade atual, séria, livre e esclarecida.

3 – O pedido pode ser livremente revogado a qualquer momento nos termos do artigo 9º.

Constituirão, assim, requisitos da aplicação da lei da eutanásia, cuja verificação cumulativa será obrigatória, os seguintes: ser a pessoa maior de idade; estar a pessoa numa “situação de sofrimento extremo”; padecer a pessoa de uma “lesão definitiva” ou de uma “doença incurável e fatal”; e corresponder o pedido “a uma vontade atual, séria, livre e esclarecida”. Analisemos cada um destes requisitos.

(i) Quanto ao requisito da “situação de sofrimento extremo”, importa ter presente que, na ausência de especificação da lei, esse sofrimento tanto poderá ser físico, como psicológico. Admitindo-se um sofrimento psicológico, estar-se-á a admitir um sofrimento existencial.

Por outro lado, dizer-se que o sofrimento tem de ser “extremo” é utilizar um conceito vago, indeterminado e impreciso, que, por definição, não permitirá uma verificação objectiva e, assim, rigorosa do mesmo. Como poderão os médicos e a Comissão, que irão emitir parecer sobre a verificação, no caso concreto, do cumprimento dos requisitos previstos na lei, avaliar se o sofrimento que é invocado pela pessoa que pede para morrer é “extremo” ou não? Como poderão eles concluir que o sofrimento não é extremo, se a pessoa que pede para morrer diz que, para ela, o sofrimento é extremo? Sendo a natureza extrema do sofrimento uma realidade eminentemente subjectiva e não objectivamente mensurável, muito dificilmente poderá um terceiro, seja médico ou não (como é o caso da maioria dos membros da dita Comissão), concluir em sentido contrário. Nesta medida, é fácil antecipar-se qual será o resultado da avaliação que será feita a este requisito.

(ii) Quanto ao requisito da “lesão definitiva”, na ausência de especificação da lei, essa lesão definitiva tanto poderá ser uma lesão física, como, inclusive, uma lesão psicológica. Por outro lado, também na ausência de especificação da lei, a lesão, ainda que tenha de ser definitiva, não terá de ser nem muito grave ou sequer grave, nem incapacitante, total ou parcialmente.

Quer isto significar que uma qualquer simples lesão (física ou mesmo psicológica), desde que seja definitiva e seja causadora de um sofrimento extremo, poderá ser fundamento bastante para que uma pessoa possa pedir para ser eutanasiada. Ora, a lista de possíveis lesões (mesmo que só físicas) que sejam definitivas é interminável e por isso impossível de aqui ser descrita.

(ii) Quanto ao requisito da “doença incurável e fatal”, sem prejuízo de, com os avanços permanentes da ciência médica, aquilo que hoje é considerado uma doença incurável poderá não o ser amanhã e de poderem existir tratamentos para certas doenças em outros países que não Portugal, importa chamar a atenção para que não se exige que a doença incurável seja uma doença terminal (i.e., com um prognóstico vital estimado de semanas ou meses), mas apenas que a doença incurável seja fatal, sem sequer se exigir um prognóstico vital estimado para a ocorrência da fatalidade.

A lista de doenças incuráveis e fatais é enorme: doenças neurológicas crónicas (ex: Alzheimer e Parkinson), doenças oncológicas incuráveis, insuficiências cardíacas graves (ex: Cardiopatia congénita), insuficiência renal em fase avançada  (hemodiálise crónica), insuficiência respiratória em fase avançada, AVC graves, doença pulmonar crónica obstrutiva, doenças psiquiátricas crónicas sem incapacidade, doenças genéticas graves ainda assintomáticas (ex: doença de Huntington), trissomia 21, demência em fase inicial, fibromialgia, hepatite C, infecção HIV, lupus, atrofia espinhal, imunodeficiências primárias, doença de Crohn, entre tantas outras.

Quer isto significar que poderá pedir para ser eutanasiada uma pessoa que padeça de uma doença incurável e fatal, mesmo não se sabendo, nem sequer se estimando, quando é que ocorrerá o acontecimento fatal, o que poderão ser anos.

(iii) Quanto ao requisito de o pedido corresponder “a uma vontade atual, séria, livre e esclarecida”, mais uma vez, saber se o pedido para morrer corresponde a uma vontade séria, livre e esclarecida faz apelo a conceitos indeterminados, vagos e imprecisos, muito difíceis de serem concretizados e avaliados objectivamente. Por outro lado, como é possível afirmar-se que a vontade de quem pede para morrer, estando numa situação de sofrimento extremo, é uma vontade livre ou séria ou esclarecida? Não limita ou afecta o sofrimento extremo a capacidade da pessoa para tomar uma decisão livre e esclarecida ou mesmo séria?

Sendo as condições associadas à vontade de quem pede para morrer realidades eminentemente subjectivas e de muito difícil avaliação objectiva, muito raramente conseguirá um terceiro, seja médico ou não (como é o caso da maioria dos membros da dita Comissão), concluir que as mesmas não se verificam. Nesta medida, é fácil antecipar-se qual será o resultado mais frequente da avaliação que será feita a este requisito da vontade, tanto mais que não se prevê a avaliação obrigatória de quem pede para morrer por um médico psiquiatra, nem uma avaliação por um psicólogo, podendo, inclusive, nem sequer a família do doente ser consultada.

Em suma, a amplitude dos casos à partida admitidos na lei da eutanásia que se encontra em preparação no Parlamento é assustadora. E é assustadora não apenas para aqueles que, como eu, são contra a eutanásia, sejam quais forem as circunstâncias, mas também o devia ser para aqueles possam ser favoráveis à eutanásia em situações excepcionais de doenças terminais, uma vez que a lei em preparação não deixa margem para quaisquer dúvidas: aquilo que se pretende não é despenalizar e legalizar a eutanásia apenas em casos excepcionais ou especiais de doentes terminais, conforme tem sido a narrativa “oficial” dos seus promotores e defensores e tem sido acriticamente repetida pela comunicação social, a começar pelas notícias que são divulgadas pela Agência Lusa.

E nem se diga que a lei da eutanásia será seguramente interpretada e aplicada de forma restritiva e com “bom senso”. Como escreveu a deputada Isabel Moreira, num post colocado na sua página de Facebook no passado dia 18 de Outubro, a respeito da proposta de lei do Governo, que previa a instalação obrigatória da aplicação StayAway Covid:

“Não vale a pena relativizar o que a proposta de lei prevê claramente. Se fosse aprovada, ela teria de ser respeitada tal como é e não com base na interpretação bondosa deste ou daquele.”

Assim, uma das questões que nos devia preocupar a todos neste momento não é o da lei da eutanásia a aprovar poder vir a ser aplicada a casos nela não previstos ou de poder vir a ser objecto, no futuro, de alterações e ampliações, passando a aplicar-se a menores de idade, a doentes mentais e/ou inconscientes, ou contra a vontade dos doentes, no conhecido fenómeno da “rampa deslizante” que tem ocorrido nos (poucos) países em que a eutanásia está legalizada.

O problema mesmo é o de essa lei, se a mesma vier a ser aprovada e se efectivamente vier a entrar em vigor, vir a ser aplicada aos casos e nos termos nela previstos. Hoje, analisei os casos. Em futuro artigo, quando conhecer o texto final da lei, analisarei os termos do procedimento administrativo que poderá conduzir ao deferimento e à execução da morte pedida, termos esses que, pelo texto dos projectos de lei apresentados, se afiguram ser tão pouco exigentes, que nem sequer assegurarão um escrutínio rigoroso do cumprimento dos referidos requisitos e uma comprovação clínica dos mesmos.