Nos últimos dias correu pelos jornais a notícia de um condenado a prisão perpétua por violação e assassínio que pediu a eutanásia por não suportar mais o “sofrimento psicológico”. O pedido, primeiro aceite, foi depois recusado. É uma boa história porque permite falar da questão da eutanásia sem cairmos nos habituais casos-limite que apelam à empatia: casos como o de Ramón Sampedro (que deu o filme Mar Adentro), um pescador, tetraplégico há 20 anos, a quem o Estado e a sociedade não permitiam que morresse e a quem os amigos serviram cianeto, que ele bebeu voluntariamente por uma palhinha, ou o de Vincent Humbert, um jovem bombeiro que ficou tetraplégico, cego e mudo num acidente e a quem foi a própria mãe quem deu a morte.
Estas histórias são uma armadilha. Porquê? Porque definem situações-limite com as quais é impossível não simpatizar. Mas será lícito pensar estes temas a partir de situações-limite? As situações-limite ajudam-nos a clarificar um problema e pode até aceitar-se, com algumas escolas filosóficas, que é nas situações-limite que o homem, cada homem, se define. Mas podem as situações-limite definir a realidade?
Fala-se da eutanásia como solução para situações de sofrimento “insuportável”. Mas o que é “insuportável”? Quem define e como se define “insuportável”? É a dor que é insuportável? A solidão? O remorso? O desespero? Para nós, ocidentais do século XXI, qualquer destas razões pode convencer. Mas, para um patrício romano, ou para um samurai japonês ou um cigano, insuportável pode ser a perda da honra. Na tradição militar britânica, ao oficial caído em desonra era-lhe permitido ficar alguns minutos sozinho numa sala com uma pistola à mão. Estamos preparados para aceitar que alguém peça o suicídio assistido por se sentir desonrado?
Sobretudo: como é que uma lei geral contempla estas nuances? Entrega a decisão nas mãos de um juiz? O mesmo tipo de juiz que considera que mulheres com mais de 50 anos já não têm uma vida sexual muito importante? Entrega a decisão à equipa médica? Mas que competência especial têm os médicos para decidir nestas coisas?
O rigor também é importante quando se discutem estas coisas. A eutanásia ou o suicídio assistido (que só diferem em quem “puxa o gatilho”) são demasiadas vezes confundidos com a eutanásia passiva, que é uma atitude totalmente diferente. Desligar máquinas de sustentação de vida ou retirar medicações que sustentam uma vida incapaz de subsistir por si não é a mesma coisa que dar uma injecção letal. Saber “deixar partir” (uma bela expressão, que encerra em si, a um tempo, as ideias de libertação e de compaixão) é essencial, sobretudo quando, como hoje, temos a capacidade de prolongar situações de “vida” (pessoas em morte cerebral ou em coma vegetativo) além de tudo o que seria expectável ainda há 50 anos.
Primum non nocere (antes de mais, não fazer mal) – este é de facto o primeiro mandamento médico, que alia o cuidado à compaixão. E que está, de resto, vertido no código hipocrático (que, de propósito, não invoquei aqui como argumento principal porque a ética hipocrática não só não pode ser considerada universal como nem sequer era dominante no seu próprio tempo, a antiguidade greco-romana): aí se diz claramente que se deve “aplicar os tratamentos para ajudar os doentes … e nunca os usar para causar mal”.
Este entendimento da medicina existiu sempre e foi sempre observado – nunca foi precisa nenhuma lei. Muitos de nós guardam memória de histórias assim na família. Foi quando as pessoas começaram a morrer nos hospitais que a eutanásia passiva se tornou um problema e é, afinal, para responder a este problema novo que começaram a surgir instrumentos jurídicos como o testamento vital.
O problema de discutir estes assuntos com base em situações-limite é criar a ilusão da simplicidade numa questão que é tudo menos simples. Todos podemos imaginar um sofrimento inominável que seríamos capazes de ajudar a terminar. Não é por acaso que, nestas histórias, quem mata ou ajuda a morrer é gente cujo amor pelo doente não é questionável: os amigos no caso de Ramón, a mãe no caso de Vincent – é caso para dizer que é preciso amar muito para danar a alma. Mas legalizar?
A mim, parece-me que a maioria das pessoas não tem medo de não poder morrer, tem medo do oposto: que as deixem morrer, que as abandonem, que as condenem. O sacrifício dos inúteis (os deficientes, os velhos) é um velho hábito nas culturas humanas. Nas nossas sociedades ocidentais o problema não é a escassez de comida mas há outros recursos escassos: ventiladores, orgãos para transplante, meios de hemodiálise. Há que definir prioridades. Mas como? Mas quais? Mas quem?
Deixem-me contar uma história. Há muitos anos, era eu interno geral, puseram-me ao telefone a tentar descobrir nos hospitais de Lisboa um ventilador para uma doente com 80 anos, um acidente vascular cerebral e poucas perspectivas de sobrevivência. Nenhum hospital tinha ventilador disponível – pelo menos depois de eu descrever a doente. Por fim, de Santa Maria atendeu-me um antigo professor que, depois de ouvir a história e de uma pausa, desabafou: “Bom, eu não devia aceitar. A seguir entra-me aí um puto de 20 anos politraumatizado e não vou ter ventilador para ele. Mas quem sou eu para armar em Deus, não é? Mande a velha.”
O problema desta história é que é fácil compreender os argumentos dos que recusaram.
Pessoalmente, acho que decidir ajudar alguém a morrer não deve ser um gesto legitimado pela lei. Deve ficar claramente além da linha divisória, em território de ilegalidade ou de pecado (conforme a perspectiva). Deve ficar entregue à consciência de cada um – à insónia de cada um. Em Million Dollar Baby, o fabuloso filme de Clint Eastwood, Maggie, uma jovem e ambiciosa pugilista, sofre um acidente no ringue e fica paralisada. O seu velho treinador, que a adoptou como filha, entra dissimuladamente no quarto de hospital onde ela jaz, uma noite, e fá-la morrer. Não pede cobertura legal nem alinha argumentos filosóficos ou morais. Age. Sozinho. Parece-me que é melhor assim.
Médico