A estória, quase anedótica, desenrola-se no contexto da Guerra Fria, entre EUA e URSS, no século passado. No âmbito da ‘conquista do Espaço’, a dado momento, as duas potências competiam, freneticamente, pelo lançamento, em primeiro lugar, de um determinado satélite inovador. No dia seguinte à colocação em órbita, pela URSS, do seu engenho, com sucesso, a manchete de  1ª página do PRAVDA informava, em letras garrafais, “URSS LANÇA O SEU NOVO SATÉLITE NUM BRILHANTE SEGUNDO LUGAR! “e, em subtítulo, letras minúsculas, “os EUA quedaram-se por um modesto penúltimo lugar…”!

Fake news ? Obviamente que não!… Então ?!…

Como Churchill notou, a democracia é o menos imperfeito dos regimes de governação que a Humanidade já conheceu. A vertiginosa transformação política, social, cultural, demográfica, económica e social a que temos vindo a assistir, em particular nas últimas três décadas, tem, contudo, vindo a fazer sobressair alguns dilemas, relevadores da insuficiência dos regimes democráticos na sua abordagem. É assim que, por exemplo, o terrorismo tem vindo a questionar o equilíbrio Liberdade vs. Segurança, a criminalidade padronizada, o balanço Privacidade/Protecção de Dados vs. Prevenção ou, o uso e posse de armas – tão discutido, hoje, nos EUA – a distopia Protecção Pessoal vs. Terrorismo Civil.

É igualmente este o caso das Fake News, contrapondo o direito à Liberdade de Expressão ao dever de bem informar ou, nalguns casos mesmo, aos Crimes de difamação, calúnia, injúria, etc…

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A democracia tem vindo a reagir a estas e outras questões, consubstanciando em legislação, tendencialmente proibicionista, opções de bom senso, que, se não erradicam, pelo menos dissuadem ou mitigam comportamentos desviantes, individuais ou colectivos, exacerbando, assim, uma imperscrutável natureza paradoxal: o regime político das ‘mais amplas liberdades’ é, em simultâneo, o regime mais proibicionista, regulamentado e regulado que o mundo já conheceu.

No caso das Fake News, para o ‘crime’ da falsidade está prescrito, no mínimo, o ‘castigo’ do desmentido…

Ora, a indução de falsas percepções, como a estória com que se iniciou esta peça, é uma questão totalmente diferente, bem mais perigosa, contundente e malévola! Desde há muito, a associação dos cigarros Marlboro à masculinidade, até, hoje mesmo, ao facto de aos milionários russos se chamar ‘oligarcas’ e aos ucranianos se chamar ‘magnatas’, passando pela ideia de que o uso de certa fragrância atrai terceiros, os exemplos são abundantes…

Começa, desde logo, pelo facto de, constituindo um fenómeno individual, não ser susceptível de desmentido; depois, porque processada que seja pelo indivíduo, se transforma numa convicção que, detendo aquele algum tipo de influência, grassa socialmente, cristalizando na tão propalada Opinião pública… a qual, Ramalho Ortigão, ainda no século XIX, não hesitou proclamar, acidamente, como ‘…a mais estúpida das coisas públicas que existe!’.

Mais: o colossal progresso registado, nas últimas décadas, pelas tecnologias de informação e      comunicação confere-lhe natureza viral que, por um lado, fomenta o unanimismo criador de conforto intelectual, por outro, promove a intolerância a qualquer tentativa de desmentido e, ainda por outro, inibe comportamentos de ruptura, pelo ostracismo social, profissional e/ou político a que remete todo aquele que não alinha no ‘mainstream’!

É por isso que, não hesito em afirmar, constituírem as ‘fake perceptions’ fenómeno bem mais estruturante que as ‘fake news’, com que, porém, todos se preocupam: a sua ‘pandemização’, rejeitante de antagonismos pode tornar-se, gradualmente, um factor distintivo da identidade cultural de grupos e povos.

Como observou e bem George Orwell, “During time of universal deceipt, telling the truth becomes a revolutionary act!”.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.