O recente caso de um professor que terá, alegadamente, agredido um aluno teve o efeito de uma pedra lançada a um charco de águas putrefactas, agitou-as, provocou umas ondas de choque e alguns dias depois tudo voltou ao normal.

Entretanto foi possível sentir o cheiro nauseabundo que se desprendeu da agitação provocada, mas não mais do que isso, olhando de longe para o lago tudo parece pacífico e idílico e, como habitual, os filósofos das coisas banais vieram apontar a falta de funcionários e a má preparação dos docentes como causa primeira destes incidentes.

O caso é excecional pois a regra é serem os alunos os agressores, apoiados muitas vezes pelos familiares, perante a inação das direções das escolas, das polícias e dos tribunais. A hipocrisia social tem nas escolas um cadinho de eleição pois sendo um local de formação por excelência pouco ali se cultivam a responsabilidade cívica, o respeito pelo próximo e os valores de uma convivência saudável na diferença.

O facto de estar em curso uma campanha antibullying promovida pelo próprio Ministério da Educação ilustra à saciedade o estado a que se chegou, embora omitindo sempre que entre as causas do problema está a total desconsideração a que foram votados os docentes, a inexistência de uma cultura de responsabilização cívica e a completa ineficácia dos regulamentos disciplinares que nada mais fazem do que criar um quadro jurídico de tal complexidade que  mais vale ignorar para poupar aborrecimentos maiores.

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Quem vive o dia a dia das escolas, sobretudo de algumas escolas há muito identificadas, sabe o calvário em que se transformou ser docente, cujo quotidiano é de total imprevisibilidade face à possibilidade de ocorrências negativas da mais diversa índole, seja um insulto banal, como chamar “vaca” à professora ou “azeiteiro” ao professor, que todos já procuram ignorar, seja altercações entre estudantes ou com os professores, sejam ameaças veladas ou explícitas e agressões dentro dos muros das escolas, pneus rebentados ou perseguições fora dos estabelecimentos.

Infelizmente, não estou a exagerar, este é o quadro obscuro que todos fingem ignorar de tal modo que se consultarem os registos disciplinares das escolas e as participações à Inspeção Geral da Educação e Ciência, pensarão que tudo isto não passa de uma percentagem ridícula de ocorrências, embora na realidade se esteja perante uma situação que há muito devia ter sido encarada com a gravidade que tem.

À semelhança do que se passa com a opinião pública e a opinião publicada, também a visão oficial das escolas não corresponde à real e digo-o com o conhecimento de causa de quem já exerceu funções de Diretor Regional de Educação do Centro e comprovei que os relatórios e as comunicações formais sobre esta matéria em nada correspondiam à visão transmitida pelos docentes em reuniões informais onde se lhes pedia para “dizerem o que lhes ia na alma” sem receio de serem apelidados de autoritários, retrógrados ou ignorantes.

De então para cá, tudo se agravou e deixo-vos apenas um pequeno apontamento de um respeitado diretor de uma escola de Coimbra que me contou com lágrimas nos olhos como um dia chamou a atenção de um aluno já espigado, que se encontrava em alegre cavaqueira com outros no recreio e que cometera um ato impróprio, e aquele, sem sequer olhar para o diretor, exclamou para os colegas “Já me viram este palhaço?”.

Não, não estou a carregar nas tintas, a realidade é bem próxima do que digo e o problema é que se finge não ver porque é politicamente incorreto “chamar os bois pelos nomes” e porque humilhar os docentes se transformou num programa político das últimas duas décadas.

A preocupação com os rankings, com o PISA, com a modernização pedagógica, com as experiências curriculares, com a representatividade dos conselhos gerais, com a entrega de mais competências aos municípios, com os manuais gratuitos, com os passes gratuitos, e o mais que todos sabemos, cria uma cortina de fumo sobre a realidade ou, como disse o Eça, “sobre a nudez crua da verdade, o manto diáfano da fantasia”.

A sociedade mudou, os alunos mudaram, a escola mudou e tem de mudar cada vez mais, mas não é por aqui que a questão se coloca, o problema de fundo é que a escola atual é uma escola sem valores, onde tudo se relativiza, tudo se aceita, tudo se permite, como se uma instituição deste tipo pudesse funcionar sem estar balizada por um quadro de valores básicos inspirados no lastro cultural do país e nos documentos fundacionais do regime democrático.

Nas escolas, em muitas escolas, os docentes são carne para canhão, lançados a um quotidiano de imprevisibilidade comportamental dos alunos e responsabilizados pessoalmente por tudo o que ocorre como se ensinar fosse um ato isolado e não um trabalho de equipa, suportado numa organização com lideranças intermédias e dirigentes de topo.

Por incrível que pareça a área de “gestão de turma” nunca foi considerada em Portugal como uma área estratégica, sendo certo que liderar uma turma é antes de mais garantir condições para que seja possível a aprendizagem e isto não se confunde com a metodologia específica da aprendizagem, que é outra coisa.

Muitos professores nunca tiveram qualquer formação ou treino para lidar com situações problemáticas, são capazes de ser excelentes no planeamento das atividades, na organização metodológica das matérias, saberem imenso de avaliação, mas confrontados com o primeiro ato de desafio de um aluno, na disputa da liderança de uma turma, numa provocação gratuita ou numa tentativa de agressão verbal ou física, ficam paralisados ou perdem a cabeça.

O problema em apreço não é de fácil solução, mas pode ser corrigido progressivamente, desde que haja um quadro de valores de respeito obrigatório nas escolas, consensualmente assumidos pelas forças sociais e órgãos do Estado e do Governo, regulamentos disciplinares mais claros e, sobretudo, mais ágeis e eficazes, maior diálogo com os estudantes e respetivas famílias e formação e treino dos docentes e outros agentes educativos sobre “gestão de turma e de situações problemáticas envolvendo os alunos e as famílias”.